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Um
Roubo
«(…)
Riscou um fósforo, de cabelos em pé. Até se desconhecia! Ninguém as calça que
as não borre, bem se diz lá!... Na luz incerta que se fez, pôs-se a olhar
febrilmente para todos os lados e a ouvir ao mesmo tempo, de orelha fita, o
silêncio pesado da capela. Felizmente, nada. Imóveis e espantados, os santos
pareciam surpreendidos, mas não faziam um gesto para defender a moradia.
Realmente, todos de pau! Que sossego! Chegava a parecer mentira que uma casa de
Deus tivesse de noite um ar tão desgraçado. Nos palheiros, ao menos, havia
ratos! Deu alguns passos. Como o fósforo estava no fim e já lhe aquecia os
dedos, riscou outro. Menos inseguro, subiu as escadas do altar de S, José, logo
à entrada. E, quase serenamente, acendeu a vela dum castiçal. A igreja clareou
quanto a luz pôde. E, mais iluminada, tomou-se ainda mais simples, mais
natural. As imagens já nem sequer o ar atónito de há pouco conservavam; e o
resto, francamente, sem nenhum ar divino. Toalhas, bancos, jarras... O trivial.
Tanta mortificação inútil! Voltou-se. A caixa das esmolas estava ao fundo,
enterrada na parede que ligava o templo ao cabido. Era do lado de fora, pela
fresta cavada na cantaria, que os devotos deixavam cair a boa massinha. Pinga
que pinga... Uma mina! Com passos de lã, chegou-se. Caramba, seria que não
estivesse a abarrotar?! Pôs a luz no chão e meteu mãos à obra. Se calhar tinha
que escaqueirar a tampa à martelada... Mas não é que a fechadura parecia de
papelão e cedia ao cinzel sem resistência nenhuma?! Tudo às mil maravilhas...
Um mês de tripa forra ninguém lho tirava.
Desgraçadamente,
a caixa estava limpa. Ou fora roubada, ou a esvaziara o padre Bento na véspera
ou então já não havia fé neste amaldiçoado mundo. Ah!, mas ele, Faustino, não
se deixava enganar assim. Não. Tivesse a Senhora da Saúde paciência. Lá pouco
dele, isso vírgula! Vinha com boas intenções. Obrigavam-no, pronto: ia o que
houvesse e passava tudo a patacos. Pegou de repelão no castiçal e avançou
indignado para o altar mor. Não acreditava que no sacrário a miséria fosse
também assim. Era. Os dois SS entrelaçados na portinhola queriam dizer apenas
um buraco escuro, vazio, onde os seus dedos resolutos tactearam em vão. Ladrões!
Filhos duma grande... Nem ao menos o cálix! O que vale é que havia ainda a
sacristia para revistar. E que não estivessem lá os apetrechos devidos! Ia a
casa do abade, que lhe havia de pôr ali o que pertencia à santa... O cálix, a
cruz, o turíbulo, tudo. E a bagalhoça, claro. Pouca vergonha! Investiu pela
sacristia dentro. Queria ver quem levava a melhor. Mas qual o quê! Estava mesmo
roubado. Flores desbotadas de papel, tocos de círios, um crucifixo partido...
Que cambada!
Desanimado,
pegou na luz. Larápios! À medida que o desespero tomava conta dele, perdia o
resto duma precaução que a prudência lhe aconselhara. Falava alto, rogava
pragas, caminhava pela capela abaixo com a indignada razão de quem andava na
sua própria casa a verificar os danos dum assalto de bandidos! Canalhas! Até
que chegou ao fim da nave. Olhou ainda os altares num relance. Os santos lá
continuavam parados como há bocado e a olhá-lo agora a modos de caçoada. Sim
senhor, uma linda figura de pedaço de asno que fizera diante deles! Pôs o
castiçal no chão, soprou a vela, puxou a porta e saiu.
O
temporal redobrara de fúria. A atravessar o adro, com a desilusão a
percorrer-lhe as veias, é que via bem como a escuridão era cerrada e como a
chuva lhe trespassava o corpo. Porca de vida! Um homem a fazer por ela, a
aguentar no lombo uma noitada daquelas, para ao cabo dar com o nariz no
sedeiro! Na carvalhada da Arcã já os ombros, de entanguidos, se lhe queriam
meter pelo pescoço dentro. Filhadinho! A roupa ia-lhe tão colada ao corpo que
parecia que era a pele. Cadela de sorte! Na curva, lá estava outra vez a alma
do Joaquim Teodoro a pedir o padre-nosso. Pata que lambesse o Joaquim Teodoro!
Padre-nossos, padre-nossos, ia-se a ver e a caixa da Senhora da Saúde sem um
vintém! Ah! mas o abade punha-lhe ali a massa e o resto com língua de palmo.
Oh, se punha! Às quatro da madrugada entrou em casa. Como um pitinho! A mulher
lá estava ainda no mesmo sítio, calada, triste, longe da vida.
Não
lhe falou. A escorrer água, gelado, foi direito à cama, despiu-se e meteu-se
entre as mantas a bater os dentes. Pela manhã ardia em febre. E daí a seis
dias, depois de um cáustico lhe abrir no peito urna bica de matéria e de o
barbeiro de Parada o ter desenganado, foi preciso chamar o confessor, a ver se
ao menos se lhe podia salvar a alma. Veio então o padre Bento, manso, vermelho,
tranquilizador. Mas o Faustino delirava. E mal o santo homem, de sobrepeliz,
lhe entrou pelo quarto dentro, arregalou os olhos, inteiriçou-se no catre,
apontou-o à mulher e aos circunstantes, e com a voz toldada da
bronco-pneumonia, rouquejou: ladrão! Prendam-no, que é ladrão!» In
Miguel Torga, Os Contos da Montanha, Edições Dom Quixote, Coimbra, 1999, ISBN
978-972-201-651-3.
Cortesia
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