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«Quando,
ao final da tarde, José Policarpo Azevedo desembarcou no Paço Real da Ribeira,
Lisboa estava a arder, ou o que restava dela. A cidade desabara à hora da missa
e encontrava-se em escombros. Era sábado, 1 de Novembro de 1755, dia de Todos os
Santos. O Sol erguera-se na sua máxima força e a manhã radiosa avançara doce,
transparente e tranquila, sem qualquer prenúncio de desgraça. Havia meses que não
chovia e o Verão entrara inclemente pelo Outono adentro, notando-se a canícula
nos caminhos poeirentos e nos campos secos onde não brotava uma erva. não se via
um pedaço de verde. Lisboa acordou mole e pachorrenta e, ainda estremunhada, preparou-se
para a missa. São Roque, Santa Catarina, São Paulo, a Sé de Lisboa, o Loreto, o
convento do Carmo, muitas dezenas de outras igrejas, estariam em breve
sobrelotadas para o serviço religioso mais importante do dia. O povo ia à
missa. Nobres e burgueses vestiam os seus melhores fatos e destilavam de calor,
acotovelando-se nos templos a deitar por fora, em redor dos quais enxameavam
mendigos esfarrapados, cocheiros ocupados com os seus cavalos irrequietos, vendedores
de bugigangas e crianças órfãs que dormiam pelas ruas e que, desde bem cedo,
eram atraídas pelo toque dos sinos às igrejas onde afluíam as gentes ricas.
Ainda não eram oito horas quando dona
Carlota Justina Vasconcelos Mattos, filha única do conde de Montargil, abriu um
olhinho rameloso, esticou um braço fora das cobertas, espreguiçou-se muito indolente,
deixando depois cair o braço na cama, como que hipnotizada a fitar os anjos desenhados
no dossel, por cima dela. Sentiu-se preguiçosa, capaz de ficar mais urna hora à
deriva nas intermitências do sono, mas não, hoje era um dia importante, era
preciso reagir. Deitou a mão à mesinha-de-cabeceira, agarrou na pequena
campainha e agitou-a com energia, fazendo bater o badalozinho estridente. Logo acudiram
a criada Arlete e a ama, dona Consolação. A rapariga abriu a porta do quarto, afastou
o grosso reposteiro de veludo pesado, enquanto dona Consolação aguardou atrás com
os dedos das mãos entrelaçados à frente do peito como que em oração, muito direita,
de queixo erguido, grave no seu vestido fúnebre, um fio ao pescoço e uma grossa
cruz de prata.
Dona Carlota Justina ergueu-se na
cama e ficou sentada a fazer beicinho, exaurida, dir-se-ia enferma, ou a chocar
um resfriado. Mas não, no auge dos seus 17 anos, era já uma mulher feita e senhora
do seu nariz empoado, uma frança, como se usava chamar às mais
requintadas do reino, seguidoras incondicionais da moda francesa. Pois bem, dona
Carlota Justina não padecia de nenhuma febre e dona Consolação não fez caso dos
modos contrariados da menina, que mais não eram do que a atitude chique que se esperava
de uma donzela excessivamente elegante.
Arlete apressou-se a ajudar a menina
a sair do leito, a pôr os chinelos de veludo, a envergar o robe de chambre. A ama
ocupou-se do petit-déjeuner, um prato de fruta variada, descascada, cortada em pedacinhos.
Carlota Justina segurou um pequeno espelho de prata e observou-se olhos nos olhos,
cheia de melancolia. E monsieur Marcel?, perguntou, distraída. Está a chegar, disse
a ama. Ficou de vir às oito e meia. E ainda não são? Faltam quinze minutos. O cabeleireiro
chegou pontualmente à hora combinada. Saltou da sua sege de luxo, imobilizada por
baixo do pórtico que dava passagem para o jardim, e subiu a escadaria que
conduzia ao primeiro andar. Percorreu em passo alegre e saltitante os
corredores marmoreados, os sucessivos e imensos salões pintados com frescos,
atravessou aquela casa apalaçada onde moravam somente Carlota Justina e o paizinho,
e um batalhão de criados, naturalmente». In Tiago Rebelo, A Maldição do Marquês,
Edições ASA, Grupo LeYa, 2019, ISBN 978-989-234-707-3.
Cortesia de ASA/JDACT