quinta-feira, 5 de março de 2020

Memorial do Convento. José Saramago. «Não tenho pecados a confessar: Para o dever da missa não faltariam igrejas perto, a dos agostinhos descalços, por exemplo, que é a mais cerca, mas se o padre Bartolomeu Lourenço…»


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«(…) Sendo os haveres tão poucos, uma viagem chegou para transportar, à cabeça de Blimunda e às costas de Baltasar, a trouxa e o atado a que se resumiu tudo. Descansaram aqui e além no caminho, calados, nem tinham que dizer, se até uma simples palavra sobra se é a vida que está mudando, muito mais que estarmos nós mudando nela. Quanto à leveza do fardo, assim deveria ser de cada vez levarem consigo mulher e homem o que têm, e cada um deles ao outro, para não terem de tornar subir os mesmos passos, é sempre tempo perdido, e basta. Num canto das alfaias agrícolas desenrolaram a enxerga e a esteira, aos pés delas encostaram o escano, fronteira a arca, como os limites de um novo território, raia traçada no chão e em panos levantada, suspensos estes de um arame, para que isto seja de facto uma casa e nela possamos encontrar-nos sós quando estivermos sozinhos. Em vindo o padre Bartolomeu Lourenço, poderá Blimunda, se não tem trabalhos de lavar ou cozinhar que ao tanque a levem ou ao forno a retenham, ou se não prefere assistir a Baltasar passando-lhe o martelo ou a turquês, a ponta do arame ou o feixe de vime, poderá Blimunda estar no seu resguardo de mulher de casa, que às vezes até a mais habituais aventureiras apetece, ainda quando não seja a aventura tanta como a que por derradeiro aqui se promete. Servem também os panos pendurados ao acto da confissão, posto o confessor deste lado de fora, postos os confitentes, um de cada vez, do lado de dentro, precisamente onde constantes pecados de luxúria ambos cometem, além de serem concubinos, se não é pior a palavra que a situação, aliás facilmente absolvida pelo padre Bartolomeu Lourenço que tem diante dos próprios olhos um maior pecado seu aquele de orgulho e ambição de fazer levantar um dia aos ares, aonde até hoje apenas subiram Cristo a Virgem e alguns escolhidos santos, estas espalhadas partes que trabalhosamente Baltasar vai conjugando, enquanto Blimunda diz do outro lado do pano, em voz alta bastante para que Sete-Sóis a ouça, Não tenho pecados a confessar: Para o dever da missa não faltariam igrejas perto, a dos agostinhos descalços, por exemplo, que é a mais cerca, mas se o padre Bartolomeu Lourenço, como acontece, tem obrigações do seu ministério ou atenções e serviços na corte que o ocupem mais que o costumado de quem aqui nem precisaria vir todos os dias, se não acode o padre a espevitar o fogo da alma cristã que sem dúvida habita Blimunda e Baltasar, ele com os seus ferros, ela com o seu lume e a sua água, ambos com a ardência que os lança sobre a enxerga, não é raro esquecerem o sacrifício divino e do esquecimento não ficarem repesos, com o que passa a ser lícito duvidar se finalmente é cristã a suposta alma de ambos. Vivem dentro da abegoaria, ou saem a tomar o sol, cerca-os a grande quinta abandonada onde as árvores de fruto vão regressando à braveza natural, as silvas cobrindo os caminhos, e no lugar da horta encrespam-se florestas de milhãs e figueiras-do-inferno, mas já Baltasar, com a foice, rapou a maior, e Blimunda, com o enxadão, cortou e pôs ao sol as raízes, havendo tempo ainda esta terra dará alguma coisa do que deve ao trabalho. Mas também não faltam lazeres, por isso, quando a comichão aperta, Baltasar pousa a cabeça no regaço de Blimunda e ela cata-lhe os bichos, que não é de espantar terem-nos os apaixonados e os construtores de aeronaves, se tal palavra já se diz nestas épocas, como se vai dizendo armistício em vez de pazes. Blimunda é que não tem quem a cate. Faz Baltasar o que pode, mas se lhe chegam mãos e dedos para filar o insecto, faltam-lhe dedos e mão que segurem os pesados, espessos cabelos de Blimunda, cor de mel sombrio, que mal ele os afasta logo regressam, e assim escondem a caça. A vida dá para todos.
Nem sempre o trabalho corre bem. Não é·verdade que a mão esquerda não faça falta. Se Deus pode viver sem ela, é porque é Deus, um homem precisa das duas mãos, uma mão lava a outra, as duas lavam o rosto, quantas vezes já teve Blimunda de vir limpar o sujo que ficou agarrado às costas da mão e doutro modo não sairia, são os desastres da guerra, mínimos estes, porque muitos outros soldados houve que ficaram sem os dois braços, ou as duas pernas, ou as suas partes de homem, e não têm Blimunda para ajudá-los ou por isso mesmo a deixaram de ter. É excelente o gancho para travar uma lâmina de ferro ou torcer um vime, é infalível o espigão para abrir olhais no pano de vela. mas as coisas obedecem mal quando lhes falta a carícia da pele humana, cuidam que se sumiram os homens a quem se habituaram, é o desconcerto do mundo. Por isso Blimunda vem ajudar, e, chegando ela, acaba-se a rebelião, Ainda bem que vieste, diz Baltasar, ou sentem-no as coisas, não se sabe ao certo». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT