sexta-feira, 13 de março de 2020

A Rainha Perfeitíssima. Paula Veiga. «Segundo ouvi algumas vezes comentar por várias pessoas, meu pai era um fidalgo altivo e com uma ambição desmedida. A recordação que tenho dele é de que se tratava de um homem generoso…»

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Alcochete, Paço Real, 31 de Maio de 1469
«(…) O nascimento do meu irmão mais novo, Manuel, foi para mim uma dádiva de Deus. Apesar dos onze anos de idade que nos separavam, foi como um filho que eu vi nascer e crescer. Uma fatalidade fez com que viesse a ocupar o lugar na História que estava designado ao meu próprio filho, mas não quero antecipar-me na narrativa.
Manuel nasceu em Alcochete, a 31 de Maio do ano da graça de 1469, no dia da festa do Corpo de Deus, quatro anos após o nascimento e desaparecimento da minha irmã Catarina.
Como era o mais novo dos meus irmãos, a sua vida não foi estruturada com vista a uma coroação, mas quis o destino que se tornasse rei. Foi para fugir a um surto de peste que assolou Lisboa que a família se refugiou no Paço Real de Alcochete. Alcochete era uma bonita vila banhada pelo estuário do Tejo. De origem árabe al caxete, que significa o forno, foi também ocupada pelos Romanos. Após a Reconquista Cristã, pertenceu à Ordem de Santiago. Possuía inúmeras salinas onde nidificavam várias espécies de aves aquáticas, o que a tornava numa região muito calma e bela.
A nossa mãe deu à luz, neste ambiente pacato, o seu último filho varão, a quem deu o nome de Manuel (Emanuel), que em hebraico significa Deus connosco e que talvez por isso mesmo acabou por subir ao trono de Portugal.
Muitos dizem que estava predestinado por Deus a assumir um papel notável na História de Portugal de aquém e de além-mar. Mas foram vários os factores que acabaram por torná-lo um candidato ao trono, por isso o apelidaram de O Venturoso. No entanto muita água haveria de correr debaixo da ponte para que isso viesse a acontecer, mas de facto foi o que sucedeu.
Este meu irmão venturoso viria a beneficiar da morte de seis herdeiros mais bem colocados do que ele (na linha directa, Afonso, filho de João; na linha colateral, os infantes João, Diogo, Duarte, Simão e Dinis, todos irmãos mais velhos de Manuel) para sucederem ao trono, bem como da falta de descendência por parte do herdeiro varão e também da morte precoce da minha cunhada, dona Joana, a infanta monja, que não casou apesar de ter tido vários pretendentes e que por isso mesmo não deixou qualquer descendente.

Setúbal, 18 de Setembro de 1470
Um ano depois de Manuel nascer, a família encontrava-se em Setúbal quando meu pai adoeceu repentinamente. Ainda era relativamente jovem e achava-se no auge do seu poder. Estabelecera alianças políticas significativas ao negociar os casamentos das suas duas filhas. Estas alianças permitiriam, a curto prazo, controlar a coroa, uma vez que eu tinha sido prometida ao herdeiro do trono e Isabel ao futuro duque de Bragança. Na sua óptica tudo apontava para que viesse a colher frutos mais tarde, altura em que colocaria um neto no trono de Portugal. Desconhecia, porque era imprevisível quando adoeceu fatalmente, que viria a colocar no trono um filho e três netos (João III Henrique I,reis de Portugal; dona Isabel, rainha de Espanha e imperatriz do Sacro Império Romano-Germânico).
Segundo ouvi algumas vezes comentar por várias pessoas, meu pai era um fidalgo altivo e com uma ambição desmedida. A recordação que tenho dele é de que se tratava de um homem generoso com aqueles que lhe eram fiéis e que os recompensava principescamente. Faleceu no dia 18 de Setembro, rodeado pela sua família e agarrado as mãos do rei que muito amava e respeitava. Afonso, dai-me as vossas mãos! Por favor, Fernando, ficai deitado. A febre é alta e não vos fará bem toda esta inquietação. Quero que me prometeis que cuidareis de Beatriz e das crianças. Sim, Fernando, prometo. Nada lhes faltará. Eu próprio zelarei para que isso aconteça. Meu irmão, meu rei, como vos amo. Que Deus tenha piedade de vós e vos mantenha à frente dos destinos deste reino ainda durante muito tempo. Estai tranquilo, meu irmão. Deus chamou-me a mim primeiro. Eu que tanto queria ver a Leonor a casar-se com o meu adorado sobrinho. Se permanecerdes calmo, ainda vereis os vossos netos nascerem». In Paula Veiga, A Rainha Perfeitíssima, 2017, Edições Saída de Emergência, 2016/2017, ISBN 978-989-773-014-6.

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT