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O
Sapateiro Santo
«(…)
Tu morreste, não te recordas?, acordava-o Telo. Esta manhã o quebrar dos
escudos. Eis o meu caminho de negrume. Sigamos por ele, Telo. Pintemos de luto
o pranto dos sinos. Ali vai saindo das portas da câmara o alferes municipal, a
abrir o préstito. Conheço-o. É André Pires. Negras são as suas vestes e monta à
bastarda um cavalo murzelo azeviche, de negra gualdrapa rastejante e cabeçada
de nojo. Tão longa a haste preta da bandeira de canhamaço preto, que se verga
desde o punho direito e do ombro do porta-bandeira até roçar o chão.
Ladeiam-no, a pé, negras as túnicas, negros os capuzes aguçados, negras as
varas nas mãos, os vereadores, os procuradores da cidade e dos mesteres. A
seguir, em cavalos murzelos gualdrapados de preto, os fidalgos que, pela idade
ou doença, não foram a Alcácer. Este é dom João, duque de Bragança, aquele dom
Francisco Melo, conde de Tentúgal. Acolá, os senhores nobres que eu deixei por governadores
do reino... Lá vem meu tio dom Henrique. Que mau ar tem!... E o povo atrás
gemendo orfandade e viuvez... Chegamos à sé. Já o juiz do cível, Lourenço
Marques, sobe ao patamar do pórtico. Ergue bem alto, acima da cabeça, o escudo negro
e arranca das cavernas do peito um ronco raivoso: chorai, senhores! Chorai,
gentes! Morreu o nosso rei Sebastião I! Telo fita-me com os olhos aguados e o
lábio a tremer. O juiz quebra o escudo contra os degraus da escadaria e o
guaiar do povo sobe pelas ruelas até às muralhas da alcáçova. Descemos à rua
Nova. O cortejo estende-se vagaroso ao badalar dos sinos: a meio caminho pára.
Agora é Duarte Lampreia, juiz do crime, que ergue o escudo e brada enrouquecido:
chorai, senhores! Chorai, cidadãos! Chorai, povo! Morreu o rei Sebastião!, e,
por entre soluços e choros, estilhaça o escudo na calçada. Vamos daqui
agarra-me Telo pelo braço. Deixa, digo-lhe. Irei até ao fim. Já no Rossio, sobe
o outro juiz do crime, Gaspar Campelo, as escadas do hospital de
Todos-os-Santos e, com o mesmo brado fúnebre, quebra na pedra o terceiro escudo...
Regressam por São Nicolau a ouvir missa na sé.
Ficamos
no vão de um portal a vê-los desaparecer... Vem, disse Telo. Ali adiante, numa
porta sob as arcadas, entra-se para um refeitório. As freiras do hospital
servem uma sopa quente e pão. A sopa dos pobres, considerou Savachão, enquanto
caminhavam por entre esvoaçar de pombos que vinham às migalhas. Um rei morto
não pode sentir o orgulho ferido. Grande fila de mendigos à espera de vez.
Escondem nos alforges de andrajos a sua fortuna: côdeas de pão revelho, alguma castanha
pilada, um botão encontrado no chão... Tristes alguns, metidos consigo,
desdentados e sujos, homens de barba por desfazer coçando-se pulgas e cinches,
mulheres desguelhadas cheias de lêndeas... Outros lépidos na galhofa dos comentários...
Hoje é dia de festa. O cardeal vai ser alçado aqui ao lado. Pão a dobrar, caldo
de feijão com couves..., ... e um naco de chouriço... A sopa dos ricos. O rei
morreu. Viva o rei. Ontem chorou-se, hoje ri-se. Que estais prà i a dizer?,
segredou um, olhando em redor. Puxou os que estavam próximos, entre eles
Savachão e Telo, à colação e disse: sabeis o que corre? O rei não morreu e anda
por aí entre nós... Agora! Não me digas! Ainda te enforcam por isso. A minha
avó!, e fazia um gesto obsceno. Se ele anda por aí e te ouve, manda cortar-te a
língua... ... a mão direita... ... os colh… Que disse eu de mal? É o que consta...
Ah! Se ele estivesse vivo, mesmo na minha miséria era capaz de lhe beijar a
mão, os pés..., até lhe beijava o cu... Agora o velhadas, o padreco... Pchiu! Pobre
reino! Um louco, outro velho...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia
de Difel/JDACT