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Irmandade de Moura
[…]
Depois da refeição, o rei juntou-se
aos companheiros que tinham ficado na vila, numa das salas do Paço Ducal. Era uma
reunião de velhos amigos, que havia muito tinham cruzado seus destinos com o
membro mais novo da família real, um jovem que apenas aspirava a obter o governo
de uma ordem militar secundária, mas que a roda da fortuna guindara ao trono e
à cabeça de um novo império ultramarino, Ali estavam Nuno Manuel, colaço de dom
Manuel, Gaspar Lemos, Jorge Brito, Miguel Castro, Luís Vasconcelos, Álvaro Sousa
e Vasco Melo. A irmandade era maior quando fora construída, havia trinta e quatro
anos, mas o tempo encarregara-se de fazer desaparecer os outros cinco: António Brito,
irmão de Jorge, morrera de doença, em 1499; Ambrósio Serpa, fora assassinado em
Bristol, no ano de 1502, quando tentava infiltrar-se numa expedição de descobrimento
a ocidente, financiada por el-rei Henrique VII de Inglaterra; Lourenço Brito, outro
irmão de Jorge, partira para a Índia, em 1505, com o vice-rei Francisco Almeida,
e perecera com ele em 1510, quando regressava ao reino, numa escaramuça escusada
com indígenas nas proximidades do cabo da Boa Esperança; Rui Sá morrera havia três
anos com a amante, trespassados pela espada de um marido enganado; Lopo Góis
tombara no ano anterior, combatendo os mouros na batalha dos Alcaides, que se ferira
não muito longe de Azamor, em dia de Sexta-Feira Santa.
Assim que chegou, dom Manuel pediu
a Vasco que lhe desse notícias sobre as obras que decorriam no Castelo de Moura,
bem como as da edificação da nova igreja matriz, fora da cinta de muralhas. Depois
saudou uma vez mais os amigos.
Era um encontro fraternal.
Naquele grupo nunca houvera cerimónias, por mais que o destino tivesse elevado a
condição de Manuel. Com qualquer um daqueles doze, desde que estivessem em
privado, logo desaparecia a formalidade com que tinha de se tratar um neto de rei,
um duque, ou o próprio rei. Eram ocasiões de desabafo para quem levava uma vida
quase sempre controlada pela etiqueta, a que só escapavam os momentos em que Manuel
se fechava na intimidade com a rainha. Mas dona Maria, nascida princesa numa corte
severa como a dos reis Fernando e Isabel, nunca pudera subir às árvores, correr
à frente dos touros ou atrás de uma bola, como Manuel fizera nos primeiros anos
tranquilos da sua existência. Mesmo na intimidade do leito conjugal, Maria, embora
delicada, aprazível e sempre disponível para seu marido, não deixava de ser uma
Trastâmara modelada pela etiqueta. Os encontros com seus amigos da irmandade eram
momentos raros de absoluta liberdade para o rei, que vivia preso ao seu poder.
Eram todos jovens nos começos da puberdade
quando se haviam reunido na vila de Moura, na última fase das terçarias. Nessa ocasião,
no Outono de 1482, dom Manuel não regressara a Castela como refém, em
substituição de seu irmão, Diogo. O entendimento entre as duas monarquias adivinhava-se,
e esperava-se para breve a libertação do príncipe Afonso de Portugal e da infanta
dona Isabel de Castela, que por então estavam à guarda da infanta dona Beatriz,
mãe de Manuel, no Castelo de Moura, como garantes da paz alcançada em 1479. Por
isso, a rainha Isabel de Castela aceitara que o representante da Casa de Viseu nesta
complexa trama política ficasse também enclausurado no castelo alentejano. Depois
da confusão que o duque Diogo provocara na corte castelhana, engendrando um filho
à esposa do duque de Villahermosa, que era nem mais nem menos que o meio-irmão do
rei Fernando, a rainha decidira evitar mais barafunda, embora Manuel fosse muito
mais tranquilo e discreto que o altivo irmão». In João Paulo Oliveira Costa, O Império
dos Pardais, 2008, Temas e Debates, 1ª Edição, 2008, ISBN 978-972-759-993-6.
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