domingo, 15 de março de 2020

O Segredo da Rainha Velha Fina D’Armada. «O Rei estará doente?, perguntou uma voz entre a multidão que ficou sem resposta. Por um lado, ninguém sabia, por outro não se percebeu se alguém respondeu»

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Lisboa, 15 de Agosto de 1433
«Um homem na força da vida, de respiração ofegante, rompia por entre o emaranhado de cavalos, tendas, carroças e gentes, descendo um caminho do monte do castelo de São Jorge. Vinha ligeiro do alto, levantando poeira, de bolsa com instrumentos ao ombro. Parecia ter sido assombrado por qualquer visão sobrenatural. Deixem passar, por mercê, deixem passar, pedia angustiado como se o futuro do reino dependesse do que ele tinha de fazer. O ar estava repleto de murmúrios, risos misturados com prantos, pregões diversos, relinchos, latidos, sinos que não paravam de tocar, vindos das igrejas e dos barcos do Tejo. Há perto de cinquenta anos, mais concretamente há quarenta e oito anos, que Lisboa não era surpreendida por um dia assim. Nunca se vira tanta gente nas colinas de altos e baixos, tendas de almocreves constantemente a montar-se dentro das muralhas, pedintes com chagas à vista, ciganos de faca à cinta, tanta chegada de nobres e clérigos vindos de diferentes partes do reino. Os matos rasteiros tinham sido invadidos por quem procurava espaço, as oliveiras eram disputadas para sombra, antes parecendo muitas e agora poucas, aliviando o calor duma manhã de Agosto, que já ia alta. Deixem passar, por mercê, preciso de entrar no Paço Real.
O homem na força da vida passou pelo arraial das ordens religioso-militares, entre as tendas circulares de Avis e de Santiago. Reconheceu-as pelas cruzes pintadas no pano, pedindo licença para passar entre membros das ordens vestidos de igual. Ofegante, desceu a última colina e conseguiu transpor a porta das muralhas do Paço, hoje engalanadas de panos. Deixaram-no logo entrar, os homens de armas nem cruzaram as lanças, via-se que era conhecido. Os de fora ficaram surpreendidos, porque o homem tinha o aspecto dum judeu, a barba pontiaguda e a cobertura na cabeça não enganavam os olhares, embora se percebesse que era um judeu privilegiado. Não trazia ao peito, sobre o estômago, a estrela vermelha de seis pontas e as suas vestes eram luxuosas como as de um fidalgo.
Quem será aquele judeu, da raça maldita que matou Nosso Senhor?, perguntava uma peixeira que ali vendia sardinha e outros assavam em brasas acesas. A inveja nunca escondida fez com que alguém respondesse: bem sabeis como os judeus gostam de se meter! Este é dos tais que não vive na Judiaria! É o mestre físico do infante Duarle, um sábio formado pela Universidade respondeu o carniceiro real, que também entrava no Paço com uma carroça repleta de carnes que trazia do cais do Tejo. Santa Maria! O Rei estará doente?, perguntou uma voz entre a multidão que ficou sem resposta. Por um lado, ninguém sabia, por outro não se percebeu se alguém respondeu. Quem fez a pergunta também não estava à espera que lhe respondessem.
Um vago medo invadia todos e o silêncio reinava nalgumas bocas. O ar parecia carregado de malefícios e de mistérios. O corpo do Rei João I jazia num caixão no meio da Sé, que não ficava muito distante, rodeado de preces e visitantes consternados. Era voz corrente que, na hora em que o Rei fechara os olhos para sempre, o Sol se eclipsara durante duas horas, tal como acontecera na altura da morte da rainha dona Filipa de Lencastre, em 1415. Para além deste fenómeno, alguém começara a fazer contas e a divulgá-las pela cidade, contas interpretadas como mágicas. O Rei fora logo morrer a 14 de Agosto, o mesmo dia da Batalha de Aljubarrota, que ocorrera precisamente há 48 anos atrás, quando ele venceu o exército castelhano e perpetuou a independência portuguesa.

Também se dizia que adivinhara a sua morte, que se preparara como quem vai para uma viagem. Até mandara desfazer a barba, porque seria visto por muita gente e queria parecer bem. Outros mais sabedores espalhavam a coincidência do dia da sua morte ser o mesmo dia em que nascera. Eram prodígios e sinais a mais, nunca dantes vistos. Ele deixara este vale de lágrimas precisamente no dia em que completava 77 anos, dois setes». In Fina D’Armada, O Segredo da Rainha Velha, Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-246-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT