Cortesia
de wikipedia e jdact
Duas
Irmãs, um Rei
Primavera
de 1521
«Conseguia
ouvir o rufar abafado de tambores. Mas não via mais nada, para além dos atilhos
do corpete da dama que tinha diante de mim, que tapava a minha visão do
cadafalso. Estava nesta corte há mais de um ano e presenciara centenas de festividades,
mas nunca uma como esta. Dando um passo ligeiramente para o lado e inclinando o
pescoço, consegui ver o condenado, acompanhado pelo padre, caminhando devagar,
da Torre para a zona relvada onde a plataforma de madeira o aguardava, o bloco
de madeira posicionado ao centro, o executor vestido e preparado para a tarefa,
em mangas de camisa e com um capuz a cobrir-lhe a cabeça. Parecia mais uma
mascarada do que um acontecimento real, e eu assisti como se fosse um
entretenimento da corte. O rei, sentado no trono, parecia distraído, como se
estivesse a rever mentalmente o seu discurso de indulto. Atrás dele, estava
aquele que é meu marido há um ano, William Carey, o meu irmão, Jorge, e o meu
pai, sir Tomás Bolena, todos com ar grave. Eu encolhi os dedos dos pés no
interior dos meus chinelos de seda e desejei que o rei se apressasse a conceder
a clemência, para que pudéssemos ir todos tomar o pequeno-almoço. Tinha apenas
treze anos, estava sempre com fome.
O duque de Buckinghamshire, ao
longe, no cadafalso, despiu o seu casaco grosso. Era um parente suficientemente
próximo para que eu pudesse chamar-lhe tio. Estivera presente no meu casamento
e oferecera-me um bracelete dourado. O meu pai dissera-me que ele tinha
ofendido o rei de inúmeras formas: corria-lhe sangue real nas veias e mantinha
uma comitiva de homens armados em número demasiado elevado para tranquilidade
de um rei que ainda não se sentia totalmente seguro no seu trono; e o pior era
que se supunha que teria afirmado que, neste momento, o rei não tinha nenhum
filho e herdeiro, não conseguia gerar nenhum filho e herdeiro, e que o mais
provável seria que morresse sem um filho que lhe sucedesse no trono. Um pensamento
destes não deve ser proferido em voz alta. O rei, a corte, o país inteiro
sabiam que a rainha devia gerar um rapaz, e que esse rapaz devia nascer dentro
de pouco tempo. Sugerir o contrário era dar o primeiro passo no caminho que conduzia
aos degraus de madeira do cadafalso que o duque, meu tio, agora subia, firmemente
e sem medo. Um bom cortesão nunca profere verdades incómodas. A vida de uma
corte deve ser sempre alegre.
O tio Stafford aproximou-se da
frente do palco para pronunciar as suas últimas palavras. Eu estava demasiado
longe dele para ouvir, e, de qualquer forma, estava a observar o rei, que
aguardava a sua deixa para dar um passo em frente e conceder o indulto real.
Aquele homem, de pé, no cadafalso, sob a luz do Sol do início da manhã, fora o
parceiro do rei em partidas de ténis, seu rival em justas, seu amigo em centenas
de sessões de bebida e jogos, tinham sido companheiros desde a infância do rei.
O rei estava a dar-lhe uma lição, uma lição vigorosa e pública, e depois iria perdoar-lhe
e todos poderíamos ir tomar o pequeno-almoço. A figura distante voltou-se para
o confessor. Inclinou a cabeça para receber a bênção e beijou o rosário.
Ajoelhou-se diante do cepo e agarrou-o com as duas mãos. Perguntei-me como
seria, encostar a face à madeira suave e encerada, sentir o odor do vento morno
vindo do rio, ouvir, lá no alto, o grito das gaivotas. Mesmo sabendo, como ele
sabia, que se tratava de uma mascarada e não de um acontecimento real, deveria
ser estranho para o Tio pousar a cabeça e saber que o executor estava de pé atrás
dele.
O carrasco ergueu o machado.
Olhei para o rei. Estava a tardar muito na sua intervenção. Voltei a olhar para
o palco. O meu tio, com a cabeça vergada, sacudiu os braços abertos, em sinal
de consentimento, o sinal de que o machado podia ser descido. Olhei de novo
para o rei, ele deveria levantar-se nesse momento. Mas permanecia sentado, com
o seu belo rosto implacável. E enquanto ainda estava a olhar para ele, ouviu-se
outro rufar dos tambores, subitamente silenciado, e depois o baque do machado,
primeiro uma vez, depois outra, e uma terceira vez: um som tão doméstico como o
de partir lenha. Incrédula, vi a cabeça do meu tio ressaltar na palha e um
jorro escarlate de sangue emanar do pescoço estranhamente decepado. O homem do
machado, que tinha um capuz negro, colocou de parte o enorme machado com
manchas de sangue e pegou na cabeça pelo cabelo espesso e encaracolado, para
que todos pudéssemos ver aquela estranha coisa, semelhante a uma máscara:
negra, com a venda, que ia da testa ao nariz, e os dentes expostos num derradeiro
sorriso desafiador.
O rei ergueu-se devagar da sua
cadeira e eu pensei, como uma criança: meu Deus, como isto vai ser terrivelmente embaraçoso. Deixou para
demasiado tarde. Correu tudo mal. Esqueceu-se de falar a tempo. Mas eu estava
errada. Ele não deixara para demasiado tarde, não se esquecera. Queria que o
meu tio morresse diante de toda a corte, para que todos pudessem saber que só
havia um rei, e que era Henrique. Só podia existir um rei, e esse rei era Henrique.
E iria nascer um filho a este rei, a mera sugestão do contrário implicaria uma
morte vergonhosa. A corte regressou em silêncio ao Palácio de Westminster em três
barcaças, levadas a remos pelo rio acima». In Philippa Gregory, A Irmã de Ana Bolena, Duas
Irmãs, um Rei, 2001, Civilização Editora, 2007/2008-2012, ISBN
978-972-262-546-3.
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