«(…) A partida da embaixada para
Roma, ao fim da manhã de quinze de Dezembro, voltou a ser rodeada de um
esplendor quase idêntico ao da chegada das naus a Lisboa, uma semana antes. De
novo, milhares de pessoas, incessantemente possuídas por um estado de profunda
exultação, acorreram às praias do Tejo para assistir à largada dos navios e aos
rituais que a antecederam, vitoriarem o rei e a rainha, loarem o papa e
louvarem a Deus. Desde a hora do amanhecer que o céu se encobrira de nuvens cor
de chumbo, densas e medonhas como as ondas do mar que, à saída do estuário,
rebentavam sem piedade contra as rochas da costa oceânica. Mas nem assim, com o
tempo a ameaçar chuva ou tempestade, a população deixou de corresponder aos
apelos do município e da Igreja para se associar aos festejos áulicos e se
despedir da numerosa comitiva no Cais da Ribeira. O próprio Manuel I, através
de cuja corte se fez ouvir como na época dos pregões, pediu ao povo que
acudisse às margens do Tejo e lá celebrasse o acontecimento sem pranto nem dor,
como sucedia sempre que uma esquadra viajava para longínquas paragens à descoberta
de novas terras, de outras gentes, de estranhas culturas, principalmente de cobiçadas
riquezas.
Já todos haviam assistido às
partidas temerárias de Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Bartolomeu Dias,
Afonso Albuquerque e de muitos outros capitães e marinheiros cujo regresso à
pátria era sempre mais incerto do que seguro. Já todos haviam chorado pais e
filhos; as mulheres, com certeza, maridos e amantes; porventura até aqueles a
quem não restava outra coisa na vida que não fosse a desgraça da própria vida.
Só que daquela vez, a primeira entre muitas, a viagem para Roma não comportava o
risco de tragédia, quase nem sequer o risco do imprevisto. Se o mar em muitos
casos era uma ameaça, também noutros era amigo. Além disso, os portugueses
sabiam que o Criador nunca se esquecia de proteger o venturoso rei, e por
muitas zangas que Ele já tivesse tido com Manuel I pela prática continuada de
pecados cometidos na intimidade dos seus aposentos, na Casa da Mina, ora com
jovens donzelas de precária conduta, ora com jovens fidalgos de duvidosa decência,
jamais o abandonaria. Deus fora sempre generoso e tolerante com o improbo
soberano português e não seria agora, decerto, no momento em que o homem se
propunha levar a Sua Santidade presentes de inestimável valor para o reforço
patrimonial da Igreja, que deixaria de o ser. Por isso todos acreditavam no
sucesso da viagem. Por isso todos confiavam na ajuda divina. E como Manuel I entendia
que a cada gesto de amor do Altíssimo os homens deviam corresponder com amor idêntico,
pediu à população de Lisboa o regresso ao cais, para uma festa de despedida
cujo eco pudesse chegar a Roma, e impressionar o Sumo Pontífice.
E a festa começou de madrugada
ainda. A cidade, que na semana anterior fora limpa e enfeitada com gigantescos
ramos de acácias e oliveiras, de abetos e flores de tonalidades diversas,
voltava a recuperar da tradicional desorganização e do putrefacto ambiente: as
praças tinham-se enchido outra vez de imundície; as ruas passaram de novo a
servir de depósito ao excremento dos animais, dos miseráveis e vagabundos; as
tabernas e tavolagens haviam perdido o asseio transitório; as latrinas a céu
aberto, dada a extinção de múltiplas fogueiras e a murchidão das pétalas perfumadas,
voltou a cobrir a cidade com um véu de odor infecto, pútrido, sinistro. Em
apenas sete dias, Lisboa regressava ao que sempre fora: uma incomensurável
estrumeira. Mas mesmo com a cidade imunda, talvez pouco digna para valer de
sede a um acontecimento tão relevante quanto o que se pretendia celebrar, Manuel
I não deixou de exigir aos súbditos por interpostas entidades, profanas e religiosas,
uma participação marcadamente efusiva no espectáculo do adeus à embaixada. E os
súbditos, sempre dispostos a obedecerem ao rei e a cumprirem as orientações da
corte, do município ou da Igreja, compareceram aos milhares junto ao rio,
integrando muitos deles fanfarras de trombetas, pífaros, tambores, sacabuxas,
flautas, gaitas-defoles, além de vários instrumentos rudimentares, quase todos
destinados a produzir ruído e confusão». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus,
Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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