jdact
11 de Setembro de 1683
«(…) Ouvimo-los todos nós, provinham
do primeiro andar. Pellegrino, o estalajadeiro, meu patrão, tinha sido o primeiro
a tirar as suas longas pernas da cama, acorrendo rapidamente. Mas deteve-se assim
que chegou ao quarto grande do primeiro andar que dava para a via dell’Orso. Ali
escavam alojados dois pensioneiros: o senhor Mourai, um velho gentil-homem francês,
e Pompeo Dulcibeni, o seu acompanhante de viagem, originário da Marca. Na poltrona
e com os pés de molho dentro de uma tina de água para o seu habitual pedilúvio,
Mourai jazia de través e de braços caídos, enquanto o abade Melani lhe sustentava
o peito e procurava reanimá-lo sacudindo-o pela gola. Mourai olhava fixamente para
além de quem o socorria e, com grandes olhos atónitos, parecia perscrutar Pellegrino
emitindo um indistinto gorgolejo. Só então Pellegrino se apercebeu de que, na realidade,
o abade não gritava por socorro, mas estava a interrogar o velho com grande
alarido e concitação. Falava-lhe em francês, e o meu patrão não percebeu, mas imaginou
que lhe perguntava o que acontecera. No entanto, Pellegrino teve a impressão (como
ele próprio mais tarde referiu a todos nós) de que o abade Melani sacudia Mourai
com excessivo vigor na tentativa de o reanimar e, por isso, lançou-se rapidamente
a libertar o pobre velho daquelas garras excessivamente poderosas. Foi nesse momento
que o pobre senhor Mourai, com enorme esforço. balbuciou as suas últimas palavras:
ah! Quer dizer então que é verdade, gemeu em italiano. Depois, deixou de agonizar.
Continuava a fixar o estalajadeiro enquanto uma baba esverdeada lhe fluía da boca
até ao peito. Foi assim que morreu.
O velho, es el viejo, arquejou
padre Robleda num sussurro cheio de terror, meio italiano, meio espanhol, assim
que ouvimos dois homens de armas a dizerem um para o outro, em voz baixa, as palavras
peste e encerrar. Cristofano, médico e cirurgião de Siena!, chamou o oficial que
fazia a chamada. Com gestos lentos e comedidos, o nosso pensioneiro toscano fez-se
avante com a sua maleta de couro, contendo todos os seus instrumentos dos quais
nunca se separava.
Sou eu, respondeu em voz baixa depois
de ter aberto a maleta, remexido em papéis e pigarreado com ar composto e distanciado.
Era Cristofano, um senhor gorducho e de baixa estatura, de aspecto bastante cuidado
e olhar jucundo que inspirava boa disposição. Nessa noite, o seu rosto pálido e
a pingar um suor que não se preocupava em enxugar, as pupilas concentradas em
algo de invisível à sua frente e o rápido afago da barbicha negra no momento em
que se mexeu, desmentiam a sua aparente impassibilidade, revelando um estado de
altíssima tensão. Gostaria de precisar que, após um primeiro e atento exame ao corpo
do senhor Mourai, não tenho a certeza de que se trate de peste, começou
Cristofano, enquanto o médico perito pertencente ao Magistrado da Saúde, que
com tanta segurança o afirma, na realidade, deteve-se pouco tempo junto do cadáver.
Tenho aqui comigo, e mostrou os papéis, as observações que fiz por escrito.
Creio que podem servir para se reflectir mais um pouco e adiar esta Vossa apressada
deliberação.
No entanto, os homens do Bargello
não tinham vontade, nem poder, para estarem com subtilezas. O Magistrado
ordenou o encerramento imediato desta estalagem, interrompeu o oficial que parecia
ser o chefe, acrescentando que ainda não tinha sido declarada a quarentena, propriamente
falando: os dias de clausura seriam apenas vinte e sem evacuação da rua; isto, claro
está, se não se verificassem outras mortes ou doenças suspeitas. Uma vez que também
ficarei fechado cá dentro e, para me ajudar no diagnóstico, insistiu o senhor Cristofano
um pouco alterado, posso pelo menos saber mais alguma coisa acerca das últimas refeições
do defunto senhor Mourai, visto que comia sempre sozinho e no seu quarto? Poderia
tratar-se de uma simples congestão. A objecção fez com que os homens de armas hesitassem
e procurassem o estalajadeiro com o olhar. Mas este nem sequer ouvira o pedido
do médico: sentado numa cadeira, prostrado e abandonado ao desconforto, gemia e
imprecava, como era seu hábito, contra os infinitos tormentos que a vida lhe infligia.
O último deles tinha-se dado apenas uma semana antes, quando numa das paredes da
estalagem se abrira uma racha, coisa que acontece frequentemente nas velhas casas
de Roma. A fissura não representava qualquer perigo, tinha-nos sido dito; mas fora
o suficiente, já então, para deprimir e enfurecer o meu padrão.
A chamada, entretanto, prosseguia.
As sombras da noite avançavam e a patrulha tinha decidido não colocar mais entraves
ao encerramento. Domenico Stilone Priàso, de Nápoles! Angiolo Brenozzi, de Veneza!
Os dois jovens, poeta o primeiro, vidreiro o segundo, avançaram olhando um para
o outro, aliviados por terem sido chamados ao mesmo tempo, como se isso diminuísse
os seus receios. Brenozzi, o vidreiro, de olhar amedrontado, com os seus
caracóis castanhos a luzir e de nariz empinado e saliente no meio das faces rosadas
lembrava um Cristo de porcelana. Só era pena que, como habitualmente, descarregasse
a sua tensão de maneira obscena coçando com dois dedos o aipo que trazia entre pernas,
quase como se tocasse num instrumento de uma corda só. Era um vício que saltava
mais a meus olhos que a qualquer outra pessoa». In Monaldi & Sorti, 2002,
Editorial Presença, 2004, ISBN 972-233-286-4.
Cortesia de EPresença/JDACT