quarta-feira, 29 de abril de 2020

Imprimatur. O Segredo do Papa. Monaldi & Sorti. «No entanto, os homens do Bargello não tinham vontade, nem poder, para estarem com subtilezas. O Magistrado ordenou o encerramento imediato desta estalagem…»

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11 de Setembro de 1683
«(…) Ouvimo-los todos nós, provinham do primeiro andar. Pellegrino, o estalajadeiro, meu patrão, tinha sido o primeiro a tirar as suas longas pernas da cama, acorrendo rapidamente. Mas deteve-se assim que chegou ao quarto grande do primeiro andar que dava para a via dell’Orso. Ali escavam alojados dois pensioneiros: o senhor Mourai, um velho gentil-homem francês, e Pompeo Dulcibeni, o seu acompanhante de viagem, originário da Marca. Na poltrona e com os pés de molho dentro de uma tina de água para o seu habitual pedilúvio, Mourai jazia de través e de braços caídos, enquanto o abade Melani lhe sustentava o peito e procurava reanimá-lo sacudindo-o pela gola. Mourai olhava fixamente para além de quem o socorria e, com grandes olhos atónitos, parecia perscrutar Pellegrino emitindo um indistinto gorgolejo. Só então Pellegrino se apercebeu de que, na realidade, o abade não gritava por socorro, mas estava a interrogar o velho com grande alarido e concitação. Falava-lhe em francês, e o meu patrão não percebeu, mas imaginou que lhe perguntava o que acontecera. No entanto, Pellegrino teve a impressão (como ele próprio mais tarde referiu a todos nós) de que o abade Melani sacudia Mourai com excessivo vigor na tentativa de o reanimar e, por isso, lançou-se rapidamente a libertar o pobre velho daquelas garras excessivamente poderosas. Foi nesse momento que o pobre senhor Mourai, com enorme esforço. balbuciou as suas últimas palavras: ah! Quer dizer então que é verdade, gemeu em italiano. Depois, deixou de agonizar. Continuava a fixar o estalajadeiro enquanto uma baba esverdeada lhe fluía da boca até ao peito. Foi assim que morreu.

O velho, es el viejo, arquejou padre Robleda num sussurro cheio de terror, meio italiano, meio espanhol, assim que ouvimos dois homens de armas a dizerem um para o outro, em voz baixa, as palavras peste e encerrar. Cristofano, médico e cirurgião de Siena!, chamou o oficial que fazia a chamada. Com gestos lentos e comedidos, o nosso pensioneiro toscano fez-se avante com a sua maleta de couro, contendo todos os seus instrumentos dos quais nunca se separava.
Sou eu, respondeu em voz baixa depois de ter aberto a maleta, remexido em papéis e pigarreado com ar composto e distanciado. Era Cristofano, um senhor gorducho e de baixa estatura, de aspecto bastante cuidado e olhar jucundo que inspirava boa disposição. Nessa noite, o seu rosto pálido e a pingar um suor que não se preocupava em enxugar, as pupilas concentradas em algo de invisível à sua frente e o rápido afago da barbicha negra no momento em que se mexeu, desmentiam a sua aparente impassibilidade, revelando um estado de altíssima tensão. Gostaria de precisar que, após um primeiro e atento exame ao corpo do senhor Mourai, não tenho a certeza de que se trate de peste, começou Cristofano, enquanto o médico perito pertencente ao Magistrado da Saúde, que com tanta segurança o afirma, na realidade, deteve-se pouco tempo junto do cadáver. Tenho aqui comigo, e mostrou os papéis, as observações que fiz por escrito. Creio que podem servir para se reflectir mais um pouco e adiar esta Vossa apressada deliberação.
No entanto, os homens do Bargello não tinham vontade, nem poder, para estarem com subtilezas. O Magistrado ordenou o encerramento imediato desta estalagem, interrompeu o oficial que parecia ser o chefe, acrescentando que ainda não tinha sido declarada a quarentena, propriamente falando: os dias de clausura seriam apenas vinte e sem evacuação da rua; isto, claro está, se não se verificassem outras mortes ou doenças suspeitas. Uma vez que também ficarei fechado cá dentro e, para me ajudar no diagnóstico, insistiu o senhor Cristofano um pouco alterado, posso pelo menos saber mais alguma coisa acerca das últimas refeições do defunto senhor Mourai, visto que comia sempre sozinho e no seu quarto? Poderia tratar-se de uma simples congestão. A objecção fez com que os homens de armas hesitassem e procurassem o estalajadeiro com o olhar. Mas este nem sequer ouvira o pedido do médico: sentado numa cadeira, prostrado e abandonado ao desconforto, gemia e imprecava, como era seu hábito, contra os infinitos tormentos que a vida lhe infligia. O último deles tinha-se dado apenas uma semana antes, quando numa das paredes da estalagem se abrira uma racha, coisa que acontece frequentemente nas velhas casas de Roma. A fissura não representava qualquer perigo, tinha-nos sido dito; mas fora o suficiente, já então, para deprimir e enfurecer o meu padrão.
A chamada, entretanto, prosseguia. As sombras da noite avançavam e a patrulha tinha decidido não colocar mais entraves ao encerramento. Domenico Stilone Priàso, de Nápoles! Angiolo Brenozzi, de Veneza! Os dois jovens, poeta o primeiro, vidreiro o segundo, avançaram olhando um para o outro, aliviados por terem sido chamados ao mesmo tempo, como se isso diminuísse os seus receios. Brenozzi, o vidreiro, de olhar amedrontado, com os seus caracóis castanhos a luzir e de nariz empinado e saliente no meio das faces rosadas lembrava um Cristo de porcelana. Só era pena que, como habitualmente, descarregasse a sua tensão de maneira obscena coçando com dois dedos o aipo que trazia entre pernas, quase como se tocasse num instrumento de uma corda só. Era um vício que saltava mais a meus olhos que a qualquer outra pessoa». In Monaldi & Sorti, 2002, Editorial Presença, 2004, ISBN 972-233-286-4.

Cortesia de EPresença/JDACT