quarta-feira, 22 de abril de 2020

Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «Como é imprevisível, às vezes dá a outra metade, outras esquece-se, ou não dá a metade prometida. Então, nos dias seguintes, os criados de mesa dos hotéis telefonam uns para os outros…»


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Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «… às vezes dá a outra metade, prometida. Então, nos dias seguintes, os criados de mesa dos hotéis telefonam…»

 Mary

«(…) Vindo de Madrid, nos próximos dias chegaria a Lisboa um homem, de seu nome Nubar Gulbenkian, filho de um milionário arménio. Ficaria instalado no Aviz, o melhor hotel da cidade. O homem traria informações sobre dois pilotos ingleses da RAF, que estavam a atravessar clandestinamente a Espanha. Mary teria de os fazer entrar em Portugal, sem a PVDE notar, e de os fazer seguir para Londres. Não posso ser eu a falar com o Nubar, explicou Mary. Isso seria desmascará-lo. É um importante apoio nosso, mas tem de permanecer secreto. Se os nazis o descobrem é um desastre. Porquê? Mary olhou para mim, como se a calcular o quanto podia contar. O Nubar é um excêntrico. Passeia-se em Lisboa a pé, com uma bengala, seguido uns metros atrás pelo seu Rolls Royce, que guarda na garagem do Aviz. A sua excentricidade é um bom disfarce. Deu uma curta gargalhada, e acendeu outro cigarro: sabes o que contam dele? Sempre que se senta à mesa dos restaurantes dos hotéis, em Lisboa ou no Estoril, rasga uma nota ao meio e dá metade ao criado que o está a servir, prometendo-lhe a outra metade para o final da refeição, se considerar que foi bem servido.

Como é imprevisível, às vezes dá a outra metade, outras esquece-se, ou não dá a metade prometida. Então, nos dias seguintes, os criados de mesa dos hotéis telefonam uns para os outros, à procura da metade da nota que lhes falta, a ver se algum dos outros a tem! Rimo-nos. Naquela época, Lisboa era também um porto de abrigo de muitos milionários europeus, fugidos à guerra, e a cidade fascinava-se com as características de tão ilustres visitantes. Como é que ele sabe que pode confiar em mim?, perguntei. Mary enviaria a Nubar uma mensagem através de um criado do Hotel Aviz. Era outra característica de Lisboa: os criados dos hotéis eram verdadeiros pombos-correios, além de fontes preciosas de informação. O problema era que alguns também trabalhavam para os nazis.

É um dos nossos, murmurou. Uma certa excitação invadira-me. Sentia-me a ser posto à prova. Mary, contudo, tomou a emoção por receio. Não há perigo nenhum, Jack Gil. É só entrares no hotel, pedires para falar com o homem, e depois transmitires-me o que ele te disser. Não há pistolas fumegantes, nem nazis a espreitar nos corredores. Foi a minha vez de dar uma gargalhada: és muito persuasiva! Mirou-me através do seu copo de brandy, e a sua cara surgiu-me deformada pelo vidro e pelas pedras de gelo: confio em ti, Jack Gil. Não sei bem porquê. Ou talvez saiba... Talvez saibas? Desviou o copo, fazendo contacto visual comigo: sabes segurar muito bem nas saias de uma mulher. E isso é razão para confiares num homem? Mary levantou-se e caminhou pela sala na direcção da janela. Lá fora, o ciclone aumentara de intensidade. As portadas exteriores das janelas batiam com força contra a parede, produzindo um ruído desagradável.

Está feio, comentou Mary, observando a rua, e repetiu o que dissera horas antes no carro. Deve ser por isso que hoje não há ninguém a ver ninguém. Era como se o facto de não existir ninguém a observá-la a libertasse da opressão. Foi talvez nesse momento que percebi que era muito infeliz em Lisboa. A sua solidão comoveu-me. Com o passar dos meses viria a confirmar que, sem filhos e com um casamento moribundo, Mary estava à beira de um colapso. Achas que Salazar está a dormir?, perguntou ela, mudando de novo o rumo da conversa. Passava da meia-noite. Dizia-se que Salazar dormia pouco, mas era provável que àquela hora estivesse deitado. Acho que sim. Mary sorriu: um ditador nunca dorme. Pode ser neutral, mas não dorme»» In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

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