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Lisboa, 22 de Junho de 1995
Mary
«(…) Vindo de Madrid, nos
próximos dias chegaria a Lisboa um homem, de seu nome Nubar Gulbenkian, filho
de um milionário arménio. Ficaria instalado no Aviz, o melhor hotel da cidade.
O homem traria informações sobre dois pilotos ingleses da RAF, que estavam a atravessar
clandestinamente a Espanha. Mary teria de os fazer entrar em Portugal, sem a PVDE
notar, e de os fazer seguir para Londres. Não posso ser eu a falar com o Nubar,
explicou Mary. Isso seria desmascará-lo. É um importante apoio nosso, mas tem
de permanecer secreto. Se os nazis o descobrem é um desastre. Porquê? Mary
olhou para mim, como se a calcular o quanto podia contar. O Nubar é um
excêntrico. Passeia-se em Lisboa a pé, com uma bengala, seguido uns metros
atrás pelo seu Rolls Royce, que guarda na garagem do Aviz. A sua excentricidade
é um bom disfarce. Deu uma curta gargalhada, e acendeu outro cigarro: sabes o
que contam dele? Sempre que se senta à mesa dos restaurantes dos hotéis, em Lisboa
ou no Estoril, rasga uma nota ao meio e dá metade ao criado que o está a
servir, prometendo-lhe a outra metade para o final da refeição, se considerar
que foi bem servido.
Como é imprevisível, às vezes dá
a outra metade, outras esquece-se, ou não dá a metade prometida. Então, nos
dias seguintes, os criados de mesa dos hotéis telefonam uns para os outros, à
procura da metade da nota que lhes falta, a ver se algum dos outros a tem! Rimo-nos.
Naquela época, Lisboa era também um porto de abrigo de muitos milionários europeus,
fugidos à guerra, e a cidade fascinava-se com as características de tão
ilustres visitantes. Como é que ele sabe que pode confiar em mim?, perguntei. Mary
enviaria a Nubar uma mensagem através de um criado do Hotel Aviz. Era outra característica
de Lisboa: os criados dos hotéis eram verdadeiros pombos-correios, além de fontes
preciosas de informação. O problema era que alguns também trabalhavam para os nazis.
É um dos nossos, murmurou. Uma
certa excitação invadira-me. Sentia-me a ser posto à prova. Mary, contudo,
tomou a emoção por receio. Não há perigo nenhum, Jack Gil. É só entrares no
hotel, pedires para falar com o homem, e depois transmitires-me o que ele te
disser. Não há pistolas fumegantes, nem nazis a espreitar nos corredores. Foi a
minha vez de dar uma gargalhada: és muito persuasiva! Mirou-me através do seu
copo de brandy, e a sua cara surgiu-me deformada pelo vidro e pelas pedras de
gelo: confio em ti, Jack Gil. Não sei bem porquê. Ou talvez saiba... Talvez
saibas? Desviou o copo, fazendo contacto visual comigo: sabes segurar muito bem
nas saias de uma mulher. E isso é razão para confiares num homem? Mary
levantou-se e caminhou pela sala na direcção da janela. Lá fora, o ciclone aumentara
de intensidade. As portadas exteriores das janelas batiam com força contra a parede,
produzindo um ruído desagradável.
Está feio, comentou Mary,
observando a rua, e repetiu o que dissera horas antes no carro. Deve ser por
isso que hoje não há ninguém a ver ninguém. Era como se o facto de não existir
ninguém a observá-la a libertasse da opressão. Foi talvez nesse momento que
percebi que era muito infeliz em Lisboa. A sua solidão comoveu-me. Com o passar
dos meses viria a confirmar que, sem filhos e com um casamento moribundo, Mary
estava à beira de um colapso. Achas que Salazar está a dormir?, perguntou ela,
mudando de novo o rumo da conversa. Passava da meia-noite. Dizia-se que Salazar
dormia pouco, mas era provável que àquela hora estivesse deitado. Acho que sim.
Mary sorriu: um ditador nunca dorme. Pode ser neutral, mas não dorme. Depois,
novo e inesperado salto no diálogo, e a pergunta: ficas comigo esta noite, Jack
Gil? Seria o excesso de brandy? Balbuciei, mas interrompeu-me: não me
desiludas, Jack Gil. És um cobarde? Não bebes muito, compreendes a política dos
nazis, a neutralidade de Salazar e, ainda por cima, não apalpas as pernas de
uma mulher! Quem és tu, Jack Gil, és inglês ou és um palerma?» In
Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN
978-972-462-174-6.
Cortesia
de CdasLetras/JDACT