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Heranças. Animais,
imagens e símbolos nos poetas greco-latinos
«(…) Outra imagem originalíssima, a da mortandade que os Gregos infligiram
aos Persas em Salamina, está ligada ao mar e inspira-se na dureza da pesca do
atum: eles batem-lhes com pedaços de remos ou restos de destroços e partem-lhes
as espinhas, como a atuns, peixes apanhados na rede. Enchem o mar salgado
soluços misturados com queixumes, até que a noite sombria tudo pára (Os
Persas). Terminaremos a referência a imagens das tragédias de Ésquilo com o
aproveitamento das formigas e da aranha. As primeiras reflectem a triste
situação dos homens: viviam escondidos em grutas sem sol, como formigas
trabalhadoras (Prometeu), antes de Prometeu lhes dar a conhecer o fogo. Está
explícita a diligência do insecto, que acabara por se tornar simbólica. Quanto
ao aracnídeo, Ésquilo mostra compreender a repulsa que por ele habitualmente
sente a natureza feminina ao imaginar uma das Danaides a dizer que seria levada
pelo Arauto, vendo-o como aranha [...], sonho, sono negro (Suplicantes).
No mesmo século V a. C., temos na comédia de Aristófanes outro marco
importante do emprego de imagens animais, não apenas pelo número de empregos,
mas, como já veremos, pela frequente subversão do processo. Recorde-se que
Aristófanes viveu boa parte da sua vida numa época de grande liberdade, na
qual, porém, a demagogia se ia despudoradamente instalando. Crítico lúcido e
implacável, os animais servem-lhe na perfeição para retratar pessoas e costumes
detestados. Para não falarmos dos falsos sonhos proféticos, que utilizam espécies
convencionais, recordemos o recurso a animais insólitos. Alguém esperaria ver
como padrão de agilidade..., uma pulga? E alguém esperaria ver como figuração
de um ser aprisionado um..., escaravelho preso pela pata? Pois bem, é o que faz
Aristófanes quando, respectivamente, imagina um bárbaro a apreciar uma bailarina
(Tesmofórias); ou o espírito de Estrepsíadas preso a coisas terrenas, segundo
Sócrates (Nuvens). Noutros casos, Aristófanes surpreende-nos pela actualidade.
Não poderemos deixar de pensar que as suas divertidas imagens continuam a poder
aplicar-se... Eis como vê os demagogos: a nossa cidade encheu-se destes
subletrados, charlatães, macacos popularuchos, sempre a enganar o povo (Rãs).
Típico do comediógrafo é o uso de nomes de animais como termo carinhoso
irónico. Assim, por exemplo, no Pluto (1010-1011), uma avenha diz que o seu
jovem amante lhe chamava patinha e pombinha. Referência especial merecem também
os animais compósitos imaginados por Aristófanes, quando quer chegar a
determinados fins e não há espécie autêntica que o satisfaça. Para caracterizar
um cobarde, pensa, na sua metamorfose imaginária, em camelo-cordeiro, sei no
qual coexistiria a mansidão e a vontade de fugir (Aves); Filóstrato, dono de
casas de passe, parece ao comediógrafo, pela sua astuta falta de vergonha, um
cão-raposa (Lisístrata) e Caronte promete a Dioniso ouvir no Hades melodiosas
rãs-cisnes (Rãs). Estamos, afinal, perante o processo que os mais velhos se
recordarão de ter sido retomado pelo artista brasileiro Jô Soares, num programa
humorístico que há anos passou na televisão. E bastará, quanto a Aristófanes». In
Maria Isabel Gonçalves, Animais, Imagens e Símbolos nos Poetas Greco-Latinos,
Animalia, Presença e Representações, coordenação de Miguel Alarcão e Outros,
Lisboa, Edições Colibri, 2002, ISBN 972-772-353-5.
Cortesia de Colibri/JDACT