Cortesia
de wikipedia e jdact
Ficheiro:
Abu
«(…) No entanto, Diotallevi o estava
arrastando a esse tipo de vertigem, e eu devia ter percebido. Quantas vezes
vira Belbo, depois do expediente, tentando programas que lhe permitissem verificar
os cálculos de Djotallevi, para demonstrar-me pelo menos que o seu Abu lhe
dizia a verdade em poucos segundos, sem necessidade de calcular a mão, sobre
pergaminhos amarelecidos, com sistemas numéricos antediluvianos, que talvez,
digo por dizer, não conhecessem nem mesmo o zero? Debalde, também Abu
respondia, até onde podia chegar, por meio de notações exponenciais, de modo
que Belbo não conseguia humilhar Diotallevi com uma tela que se enchesse de
zeros até ao infinito, pálida imitação visual da multiplicação dos universos
combinatórios e da explosão de todos os mundos possíveis... Ora no entanto,
depois de tudo quanto havia acontecido, e com a gravura rosa-cruciana à minha
frente era impossível que Belbo não tivesse recorrido, na sua busca de uma
password, àqueles exercícios iniciais com o nome de Deus. Mas haveria de jogar
com números como trinta e seis ou cento e vinte, se era verdade, como eu
conjecturava, que ele também estivesse obcecado por aqueles algarismos.
Portanto não podia ter combinado as quatro letras hebraicas porque, bem o
sabia, quatro pedras construíam apenas vinte e quatro casas.
Poderia ter tomado a transcrição
italiana, que contém ainda duas vogais. Com seis letras teria à sua disposição
setecentas e vinte permutações. Teria podido escolher a trigésima sexta ou a
centésima vigésima. Havia chegado ali por volta das onze, e já era uma. Tinha
que compor um programa para anagramas de seis letras, bastando apenas modificar
aquele existente para quatro. Precisava respirar um pouco. Desci à rua, comprei
comida, outra garrafa de uísque. Subi de novo, deixei as sanduíches num ângulo,
passei logo ao uísque, pus o disco de sistema para o Basic, compus o programa
para seis letras, com os erros de sempre, e gastei uma boa meia hora nisso, mas
aí pelas duas e meia o programa girava e no painel, e diante dos meus olhos,
desfilavam agora os setecentos e vinte nomes de Deus.
Tomei em mãos o papel corrido da
impressora, sem destacá-lo, como se consultasse o rolo da Torah originária.
Tentei com o nome número trinta e seis. Escuro completo. Um último gole de
uísque e, em seguida, com os dedos hesitantes, experimentei o número cento e
vinte. Nada. Tinha vontade de morrer. No entanto agora eu era Jacopo Belbo e
Jacopo Belbo devia ter pensado como eu estava pensando. Certamente cometera
algum erro, um erro besta qualquer, um engano de nada. Estava a um passo da
solução: talvez Belbo, por motivos que me escapavam, tinha contado de baixo
para cima? Casaubon, seu estúpido, disse para mim. Claro, de baixo para cima.
Ou então, da direita para a esquerda. Seu input não tinha sido IAHVEH - como
não haver pensado nisso antes, mas sim HEVHAI. Era natural que naquele ponto a
ordem das permutações se invertesse. Precisava pois contar de baixo para cima.
Experimentei de novo ambos os números. Nada aconteceu. Deu tudo errado.
Havia-me obstinado numa hipótese elegante mas falsa. Ocorre com os melhores
cientistas. Não, com os melhores cientistas, só, não. Com todos. Não havíamos
observado precisamente um mês antes que nos últimos tempos foram publicados
três romances nos quais o protagonista procura o nome de Deus num computador?
Belbo não teria sido assim tão banal. Depois, vamos lá!, quando se escolhe uma
senha escolhe-se uma de que se possa lembrar facilmente, que venha espontânea a
digitar-se quase por instinto. Vejamos só, IHVHEA! Teria pois de sobrepor o
Notarikon à Temurah, e inventar um acróstico para recordar a palavra. Algo
assim como: Jmelda. Hoje Vingaste Hiram Estupidamente Assassinado...
Além do mais, por que Belbo devia
pensar nos termos cabalísticos de Diotallevi? Ele estava obcecado pelo Plano, e
no Plano havíamos metido tantos Outros componentes, os Rosa-Cruzes, a
Sinarquia, os Homúnculos, o Pêndulo, a Torre, os Druidas, a Ennoia... A
Ennoia... Pensei em Lorenza Pellegrini. Estendi a mão e desvirei a foto que eu
havia censurado. Busquei afastar um pensamento importuno, a lembrança daquela
tarde no Piemonte... Aproximei de mim a foto e li a dedicatória. Dizia: porque
sou a primeira e a última. Sou a preferida e a odiada. Sou a prostituta e a
santa. Sophia.
Deve ter sido depois da festa em
casa de Riccardo. Sophia, seis letras. E por que me ocorria anagramá-las? Eu é
que pensava de modo retorcido. Belbo ama Lorenza, ama-a precisamente por ela
ser como é, e ela é Sophia, e pensando que ela, naquele momento, talvez... Não,
ou antes, Belbo pensa de modo muito mais retorcido. Voltavam-me à lembrança as
palavras de Diotallevi: na segunda sefirah o Alef tenebroso se transmuda no
Alef luminoso. Do Ponto Obscuro brotam as letras da Torah, o corpo são as
consoantes, o hálito as vogais, e juntas acompanham a cantilena do devoto.
Quando a melodia dos signos se move movem-se com ela as consoantes e as vogais.
Surge então Hokmah, a Sabedoria, a Sapiência, a ideia primordial na qual tudo
se contém como num escrínio, pronto para desenvolver-se na criação. Em Hokmah
está contida a essência de tudo quanto se seguirá...
E que era Abulafia, com sua
reserva secreta de ficheiros? O escrínio do qual Belbo sabia, ou supunha saber,
a Sophia. Escolheu um nome secreto para penetrar no íntimo de Abulafia, o objecto
com o qual faz amor (o único) mas ao fazê-lo pensa ao mesmo tempo em Lorenza, busca
uma palavra que conquiste Abulafia mas que lhe sirva de talismã também para
possuir Lorenza, gostaria de penetrar no coração de Lorenza e compreender,
assim como pode penetrar no coração de Abulafia, quer que Abulafia seja
impenetrável por todos os demais assim como Lorenza é impenetrável para ele,
ilude-se em proteger, conhecer e conquistar o segredo de Lorenza assim como
possui aquele de Abulafia...
Estava inventando para mim mesmo
uma explicação e deixava-me iludir que fosse verdadeira. Igual em relação ao
Plano: tomava os meus desejos como sendo a realidade. Mas como já estava
bêbado, voltei ao teclado e digitei SOPHIA. A máquina voltou a perguntar com
delicadeza: tens a senha? Máquina estúpida, não te emocionas nem mesmo com o
pensamento de Lorenza». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988,
Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.
Cortesia de Sisidea/Difel/JDACT