Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) Qual é o famoso romance que começa assim? A temperatura bateu nos trinta e dois graus no dia
em que ela chegou. Não tem
impacto? Você não conhece? Eu fiz as minhas amigas que estudavam inglês no
Newnham rirem quando disse que O vale das bonecas era tão bom
quanto qualquer romance de Jane Austen. Elas riram, ficaram-me sacaneando meses
a fio. E elas não tinham lido nem uma página da obra de Susann. Mas e daí? Quem
é que dava a mínima para as opiniões desinformadas de uma matemática frustrada?
Nem eu, nem as minhas amigas. Ao menos nessa medida eu estava livre. A questão
dos meus hábitos de leitura na graduação não é uma digressão. Esses livros me
levaram directo à minha carreira na Inteligência. No meu último ano a minha
amiga Rona Kemp começou uma revista semanal chamada Quis? Esses projectos surgiam e
sumiam às dúzias, mas o dela estava à frente do seu tempo com aquela mistura de
alta e baixa cultura. Poesia e música pop, teoria política e fofoca,
quartetos de cordas e moda universitária, nouvelle vague e futebol. Dez anos depois a fórmula estava
por toda parte.
Pode não ter sido a intenção
de Rona, mas ela esteve entre as primeiras a ver o potencial dessa fórmula. Ela
acabou na Vogue,
passando pelo Times Literary Supplement e aí chegando a uma ascensão
e queda incendiárias, começando revistas novas em Manhattan e no Rio. O duplo ponto
de interrogação nesse primeiro título dela foi uma inovação que ajudou a
garantir uma sequência de onze edições. Lembrando do meu período Susann, ela me
pediu para escrever uma coluna regular, O Que Eu Li Semana Passada. As
minhas instruções eram ser informal e onívora. Mole! Eu escrevia como falava,
normalmente fazendo pouco mais que dar um sumário das tramas dos livros que
tinha acabado de devorar, e, numa autoparódia consciente, enfatizava um ou
outro veredicto ocasional com uma
fileira de pontos de exclamação. Numa ou noutra ocasião, gente que eu não
conhecia me parou na rua para dizer isso. Até o meu jocoso professor de
matemática fez um comentário elogioso. Foi o mais perto que cheguei de sentir o
gostinho daquele doce e inebriante elixir que é a fama estudantil. Eu tinha escrito meia dúzia de textos leves quando alguma coisa
deu errado. Como muitos escritores que obtêm certo sucesso, eu comecei a levar-me demasiadamente a sério. Eu era uma menina com gostos
desorientados, uma cabeça vazia, no ponto para ser
conquistada. Estava esperando, como eles diziam em alguns dos romances que eu
andava lendo, que o Homem Ideal aparecesse e me derrubasse. O meu Homem Ideal
era um russo severo. Eu descobria um autor e um assunto para a coluna e virava
fã. De repente eu tinha um tema, e a missão de convencer os outros. Comecei a
me dar o direito de fazer várias revisões dos textos. Em vez de falar directo com a página, eu estava fazendo segundas e depois terceiras
versões. Na minha modesta opinião, a minha coluna tinha-se tornado um serviço público de vital importância. Acordava no
meio da noite para apagar parágrafos inteiros e rabiscar flechinhas e balões
pelas páginas. Eu fazia importantes caminhadas. Sabia que o meu encanto popular
ia diminuir, mas não dava a mínima. Essa diminuição provava o que eu estava tentando dizer, era o heróico
preço que eu tinha que pagar. As pessoas erradas estavam lendo o que eu
escrevia. Não dei a mínima quando Rona reclamou. Na verdade, me senti justificada. Isso não está exactamente informal, ela disse sem mover um
músculo enquanto me devolvia o meu texto uma
tarde no Copper Kettle. Não foi isso que a gente disse que ia fazer. Ela estava certa. A
minha leveza e os meus pontos de exclamação
tinham-se dissolvido na fúria e na premência que estreitavam os meus
interesses e destruíam o meu estilo». In Ian McEwan, Serena, Companhia das Letras, 2012,
ISBN 978-853-592-121-2.
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