Cortesia
de wikipedia e jdact
«Era
eu um rapaz de catorze anos, e não sabia quem era... Vivia na companhia de um
padre e de uma senhora que diziam ser irmã do padre, e de vinte rapazes, que
eram meus condiscípulos. Destes, algum mais cultivado em conhecimentos do mundo
perguntava-me se eu era filho do padre. E eu não sabia responder-lhe. Ora este
padre parecia um homem muito virtuoso; mas nem por isso seria extraordinário eu
ser seu filho. Não o ouvira eu nunca salmear na harpa cantares de contrição;
mas é rigorosamente lógico que não haja David sem harpa?! Muitas vezes senti o atrevido
ímpeto de dizer-lhe: mestre!, perguntam-se se sois meu pai; deverei responder
que não, para me deixarem? Nunca, porém, fiz isto, porque entendi que não me
era uma das primeiras necessidades da vida saber de quem era filho. Propenso
para pensamentos elevados, erguendo os olhos ao céu, via eu, muitas vezes, voar
um passarinho. E dizia comigo: perguntem lá àquela criatura de Deus quem é seu
pai? Como ela corta por tão alto um espaço que é todo dela! Que liberdade, e
que independência! O meu espírito é como aquela andorinha! Eu tenho um mundo tão
amplo para voejar como ele! Se eu puder subir, subir, subir até Deus, não terei
encontrado meu pai? Isto da terra parece-me uma coisa tão pequena!...
Seria isto
uma frioleira de criança: mas eu pensava assim, e não gostava que me acordassem
neste meu berço, em que eu próprio me embalava, como se assim quisesse
indemnizar-me de carinhos, que nunca recebera ao pé do berço da minha infância.
Quem mais vezes me inquietava nestas ociosas ilusões era o padre. Eu aborrecia
o latim e a lógica e os livros e a ciência. A andorinha era o meu modelo, e a
andorinha não sabia latim. Isto de que serve, dizia eu folheando, aborrecido, o
Tito Lívio, será necessário devorar meia existência, consumi-la num luxo de
palavrões estéreis, para no fim de tudo ficar o mesmo homem, sem ao menos ter
descoberto o sexto sentido do corpo humano? Não afirmo que fosse textualmente
assim o meu raciocínio; mas, afora as palavras que a sociedade me ensinou, e
que eu lhe não agradeço, a ideia era aquela. Mas a ideia do padre era outra.
Constrangia-me a estudar e especializava-me entre os meus condiscípulos. Se o
carinho fosse sintoma de paternidade, nunca eu devera inspirar suspeitas de ser
filho do mestre. Eu não tinha férias, nem passeios, nem prémios, nem elogios.
Era um pária, um bastardo de pai, de mestre, de todo o mundo.
E,
contudo, dizia-me a pobre irmã do padre, que eu era o discípulo amado do seu
irmão. Explicava, ao seu modo, aquela teoria de amar, e chegava à triunfal
conclusão de que, sendo a ciência o meu património, quanto mais cultivado o
recebesse das mãos do mestre, mais sagrados títulos recebia para a minha
gratidão. Custava-me a perceber isto; mas, sem grande esforço de inteligência,
compreendia que era pobre. Não me apaixonava por isso. A andorinha passava nua
nas campinas do céu; e adormecia à tarde, sem granjear o alimento da manhã
seguinte. Estas razões, dadas assim àquela boa dona Antónia, faziam-na chorar.
A sensível mulher chorava com qualquer coisa, e mais não conhecia ainda o
mundo..., ou parecia não conhecê-lo. Mas a andorinha não remediava todas as
minhas ânsias de curiosidade.
Eu queria
saber quem era. Grandezas não me passavam pelo pensamento, nem eu podia
fantasiá-las. Sem subsídio, sem adulação, sem uma dádiva misteriosa, que me
fizesse cismar num segredo de família, que tinha eu com a grandeza tão
eloquente desmentida pela minha jaqueta ordinária!... Um baixo nascimento, com
todos os acessórios da indigência, esse sim, lembrava-me muito, e cheguei até a
vesti-lo de uma poesia muito triste, mas muito filha da minha índole.
Serei
filho de um sapateiro? Serei uma coisa que este padre achou numa esquina como
acharia um gato? Serei filho de algum ladrão justiçado, que este padre
acompanhou à forca? Estas perguntas começaram a doer-me o coração; mas quisera
que me respondessem: és filho de um sapateiro; és um enjeitado, erguido da lama
pela mão da caridade; és filho de um ladrão; mas..., cala-te, porque ainda vive
o carrasco que enforcou teu pai, e não podes usar de um apelido, que balbuciam
os que passam pela praça onde a forca está de pé. Parecia-me que o filho do
sapateiro podia ser um primeiro-ministro; que o enjeitado poderia ser um
carinhoso pai; que o filho do ladrão poderia ser um juiz implacável para todos
os ladrões.
Fatigado
em penosas lutas de conjecturas, adormecia, acalentado pela benfazeja ideia de
que um filho sem pai conhecido também podia ser um homem conhecido de todo o
mundo. Destas altas meditações descia eu muitas vezes a coisas insignificantes.
Por exemplo: os meus companheiros tinham, cada um, quatro sobrenomes, cinco
sobrenomes, seis, e daí para cima. Ora eu era só João. E os meus companheiros
davam uma entonação galhofeira ao meu nome». In Camilo Castelo Branco, Mistérios
de Lisboa, 1854, Edições Quidnovi, 2010, ISBN 978-989-628-187-8.
Cortesia
de Quidnovi/JDACT