quarta-feira, 22 de abril de 2020

Poesia. Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Da fantasia. Deito-me pensada de bromélias vivas e me recrio corpórea e incandescente. Tu sabes como nasceu a ideia das pontiagudas catedrais?»

Cortesia de wikipedia e jdact

Sobre a Tua Grande Face (1986)
«(…)
«Honra-me com teus nadas.
Traduz me passo
De maneira que eu nunca me perceba.
Confunde estas linhas que te escrevo
Como se um brejeiro escoliasta
Resolvesse
Brincar a morte de seu próprio texto.
Dá-me pobreza e fealdade e medo.
E desterro de todas as respostas
Que dariam luz
Ao meu eterno entendimento cego.
Dá-me tristes joelhos.
Para que eu possa fincá-los num mínimo de terra
E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro.
Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão.
Tu sabes que amo os animais
Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome
Não desejo alívio. Apenas estreitez e fardo.
Talvez assim te encantes de tão farta nudez.
Talvez assim me ames: desnudo até ao osso
Igual a um morto.

O que me vem, devo dizer-te Desejado,
Sem recuo, pejo ou timidezes. Porque é mais certo mostrar
Insolência no verso, do que mentir decerto. Então direi
O que se coleia a mim, na intimidade, e atravessa os vaus
Da fantasia. Deito-me pensada de bromélias vivas
E me recrio corpórea e incandescente.
Tu sabes como nasceu a ideia das pontiagudas catedrais?
De um louco incendiando um pinheiro de espinhos.
Arquitecta de mim, me construo à imagem das tuas casas
E te adentras em carne e moradia. Queixumosa vou indo
E queixoso te mostras, depois de te fartares
Do meu jogo de engodos. E a cada noite voltas
Numa simulação de dor. Paraíso do gozo.

De tanto te pensar, Sem Nome, me veio a Ilusão.
A mesma ilusão

Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, Sem Nome, tenho nada
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e de abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
Do muito desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n’água.
Vem apenas de mim, ó Cara Escura
Este desejo de te tocar o espírito
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT