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O
Sapateiro Santo
«(…)
Telo, sem arma, tirara o capote e, rodando-o no ar, procurava desarmar algum
dos meliantes. Savachão retirou de sob a axila a muleta, assentou a perna
doente no chão e arremeteu volteando o madeiro com tanta violência e destreza
que escachou a cabeça a um, arrombou o costado a outro e desfez a muleta no
traseiro de um terceiro que virava costas a fugir, já Luís, João e Cristóvão
acudiam à refrega e castigavam com suas estocadas os salteadores e os punham em
debandada malferidos. Assomavam homens e mulheres à porta de uma taverna a
verem a bernarda. Savachão ainda tentou apanhar a muleta, mas ela estava feita
em pedaços. Caminhou coxeando da perna dorida. Uma rapariga adiantou-se da
porta e veio dar-lhe o braço: agarra-te a mim, filho. Ao menos sirvo de cajado.
O taverneiro, entre os que assistiam, limpava as mãos ao avental e dizia: ah!
Se homens desta cepa tivessem pelejado naquela maldita batalha!
Savachão
entrou pelo braço da rapariga. Os outros seguiam-no. Sentaram-se numa mesa vaga
a um canto. Pareceis mendigos, disse o taverneiro, mas mendigo não luta assim
contra malandros. Romeiros, mentiu Telo, a caminho de Santiago. E que vão
querer Vossas Senhorias? Queremos cear, respondeu Cristóvão. Vinho, ainda me
resta uma pipa. De estalo. Carne, só toucinho rançoso. Pão, viste-lo. Na Casa
da Índia nem um saco de trigo da Flandres. Levaram tudo..., para os Mouros
comerem... Mas tenho umas migas de farelo com couve e feijão que é um primor. Traz
do que tiveres. Romeiro tem boa boca.
As
mulheres rodeavam os valentões comentando o sucedido. A rapariga, sentada ao
lado de Savachão, enxugava-lhe a testa suada: querido, que valente foste! Uma
muleta! Minha mãe! Só visto!... Tens uns lindos olhos... E esta boca?..., e
deu-lhe um beijo nos lábios... Nem o vento nem o sol, a espuma do mar, o sopro
de asas das gaivotas, o respiro de velas enfunadas, o calor das achas da lareira...,
o frémito da montaria, a vertigem de uma luta de vida e de morte... Este beijo
ficou-me na carne. Hei-de senti-lo por toda a vida. Nunca meu corpo estremeceu
assim... Que me está a acontecer?... Olhou a jovem. Era formosa, embora lhe
sombreassem os cantos dos olhos e da boca pequenas linhas de amargura.
Lembrava-lhe alguém que conhecia, lembrava-lhe... Também danças? Também lês o
passado e o futuro? Também? Sim, como... Ah! Faço-te lembrar outra. A tua
namorada abandonou-te? É por isso que te fizeste andarilho? Não, não! Deixa lá,
filho. Sei o que é dor de corno. Eu faço-te esquecer. Como te chamas? Minha
mãe! Olha-me um que me pergunta o nome! Há quantos séculos foi isso? Não tens
nome? Os homens procuram-me pelo meu corpo. Que importa quem sou? Pu… sem
nome... E, de repente, vens tu, meu docinho, e perguntas-me pelo fundo de
mim... Diz.
Queres
mesmo saber? Acenou que sim. Essa é a única coisa que ainda guardo de mim.
Deixa-a comigo, o meu segredo... O resto..., e encolhia os ombros, ... Olha, chama-me
Cadela. É nome a condizer. Ouço-o todas as noites. Putarroa, Cabra, Tinhosa...,
lindos nomes deste baptizado... Respeitarei o teu pudor, princesa. Tão querido!
Vem, dizia a moça tomando-lhe da mão. Descansarás um pouco lá em cima, enquanto
não chega a ceia... Levantou-se Savachão como adormecido e, levado pela
rapariga, subiu as escadas e desapareceram. Ao fim da noite, quando se dispôs a
descer, ela disse-lhe: nós temos dois corações, meu querido. Aquele que bate
aqui no peito..., dizem que é um pedaço de carne maior do que o de um cabrito...,
o outro, não sei bem dizer..., é uma a modos de boceta invisível onde nós
guardamos pequenas coisas, olha, uma flor que ali vai fanar, desbotar,
descheirar, sem apodrecer, como para a não deixarmos morrer. É aí que guardo o
que sinto por ti. Tu és o meu rei e no meu coração eu tenho..., dizem que os
reis têm uma cadeira de ouro numa sala muito grande...» In Fernando Campos, A Ponte dos
Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
Cortesia
de Difel/JDACT