sábado, 18 de abril de 2020

Afonso Henriques. O Homem. Cristina Torrão. «Ela insistia naquele seu jeito distante e frio, mostrando desprezo pelos desejos dele. O que o punha vulnerável. Afonso sentia-se a lutar contra o desequilíbrio, como um acrobata…»

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«(…) Porque não vos pondes do meu lado? Sois tão cego que não vedes que todos estes meus esforços acabarão por vos favorecer a vós, o meu herdeiro? Alargando os meus domínios, aumento a vossa própria herança. Essa vossa estratégia lisonjeadora talvez funcionasse com vossa irmã. Mas não comigo! Julgais que Fernão Peres me deixaria o caminho livre, caso morrêsseis antes dele? Dona Teresa não respondeu logo e empalideceu ainda mais. Acabou por dizer: é claro que deixarei em testamento... Afonso interrompeu-a, furioso: e julgais que intimidais a trupe de vosso amante com um pedaço de pergaminho? Eu prefiro a força da espada, a única língua que eles entendem! Dona Teresa fulminou-o com o olhar: dizei finalmente o que quereis! Qual o verdadeiro motivo para exigirdes esta conversa a sós? Afonso esforçou-se por soar despreocupado: pretendo dar-vos uma oportunidade. Só podeis estar, ou do meu lado, ou do lado de Fernão Peres. Teresa encarou-o com um divertimento desdenhoso, como um adulto olha para uma criança que disse um disparate: ouvi bem?
Ela insistia naquele seu jeito distante e frio, mostrando desprezo pelos desejos dele. O que o punha vulnerável. Afonso sentia-se a lutar contra o desequilíbrio, como um acrobata em cima de uma corda a dez pés de altura. Exijo que vos separeis dele! Indiferente ao esforço que esta frase lhe custara, sua mãe soava mais divertida do que nunca: vós exigis? Com que direito? Sou o vosso único filho varão. Afonso perdeu as estribeiras, berrou: posso exigir-vos seja o que for! Ela manteve-se calada, limitava-se a fixá-lo, trocista. O príncipe insistiu: aguardo a vossa resposta. Sim ou não? Não! A palavra soou fria como o ferro e clara como a água. Afonso lutava agora contra a vontade de desatar em pranto. Porque é que sua mãe continuava a ignorá-lo? Enxotava-o de si, como o fazia, tinha ele quatro anos. Virou-lhe as costas.
Chegada ao seu aposento, dona Teresa livrou-se brusca das aias que a rodeavam e sentou-se à lareira, esgotada e com falta de ar. Mas já acalmara, quando Fernão Peres surgiu, cínico: Então? Correu bem a prosa entre mãe e filho? Teresa levantou-se e apoiou-se no friso da lareira, observando as chamas. Ao sentir o calor nas faces, recuperou alguma força. Como se o seu espírito e o seu corpo se recusassem a ficar no fundo do poço, escalando, num último esforço, as paredes húmidas e escorregadias. Iria com a sua luta até ao fim. Vou marcar mais um encontro com o meu sobrinho, em Zamora. Fernão quedou-se em silêncio por longos momentos, até perguntar: pensas que o podes pôr do teu lado, depois de tudo o que se passou? Tentarei convencê-lo de que o primo cometeu traição. Traição? Em relação a quem? A mim, à rainha! Afonso vem exercendo o poder no condado sem me ter tida nem achada. Depois de uma curta reflexão, Fernão Peres remoeu, entredentes: um argumento mal-amanhado... E que faremos depois? Se mais nada nos restar, apelaremos à luta e atacaremos Afonso, em Guimarães! Teremos alguma hipótese de vitória? Não sei. Mas jogaremos a nossa última cartada.

Naquele dia de São João Baptista, do ano 1128 do nascimento de Cristo, Afonso assistia à missa na igreja de São Miguel do castelo, em Guimarães, na companhia dos barões do norte, que haviam respondido ao seu apelo. Preparavam-se para enfrentar as hostes de dona Teresa. Depois de um encontro com Afonso VII, em Zamora, que não dera em nada, a rainha juntara cerca de trezentos guerreiros, entre cavaleiros de Coimbra, Porto e Baião e as hostes galegas de Fernão Peres e de Gomes Nunes.
Afonso tinha, do seu lado, a fina-flor de Entre Douro e Minho: os três irmãos Moniz, com os dois filhos mais velhos de Egas; Soeiro Mendes Grosso Sousa, com os irmãos Gonçalo e Garcia; Paio Soares Maia, sobrinho do arcebispo de Braga; as hostes galegas do conde Afonso Nunes Celanova, que assim se juntava ao irmão Sancho Nunes; até o conde de Límia, Rodrigo Peres Veloso, outro nobre galego, se passara para o lado do príncipe e trouxera consigo o irmão bastardo do próprio Fernão Peres. Seguindo um costume da época, o conde Pedro Froilaz Trava dera àquele filho ilegítimo o nome do seu primogénito. E, da fidelidade deste segundo Fernão Peres, a quem chamavam o Cativo, Afonso não duvidava, pois o galego tudo faria para afrontar o seu meio-irmão, herdeiro do pai. O infante contava ainda com o apoio de Fernando Mendes Bragança, uma surpresa de última hora. A fronteira entre o condado Portucalense e o reino de Leão corria mal definida, nas terras rudes de Bragança, cujas gentes sentiam mais afinidades com as populações à roda de Astorga e Zamora, do que com as de Entre Douro e Minho». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.

Cortesia de EÉsquilo/JDACT