«(…) Bendito seja Deus!, exclamou
o bispo, baixinho, de braços abertos, erguidos ao céu, à entrada do templo. Havia
flores por toda a parte. Mais de uma dezena de mulheres, dois bispos e quatro
sacerdotes, cada um a seu modo, executavam com rigor e arte os trabalhos de
decoração. E de tal modo era o empenho de todos que nem deram pela entrada de
Petrini, ou, se deram, ignoraram-no, das cinco religiosas e da jovem
portuguesa. Só mais tarde, quando os padres começaram a acender as velas para
verificarem a iluminação do interior do templo é que um dos clérigos notou a
presença de Raquel Aboab, encostada a um canto, tremendo de medo e de frio. Quem
sois vós?, perguntou o eclesiasta. A mulher nem teve tempo para responder.
Nesse instante, Francesco Petrini aproximou-se dela e, a curta distância,
pediu-lhe que o acompanhasse ao pátio nas traseiras da capela para ajudá-lo a
transportar ramos de flores. Raquel ainda hesitou. Mas sem defesa ou
argumentos, ali exposta e observada por todos, acabou por aceder ao pedido do
bispo.
Vos rogo, senhor, que não
atenteis contra a minha honra, suplicou a jovem, logo que se viu a sós com o
homem, no exterior daquela casa de Deus, e se apercebeu dos intentos do
clérigo. Calai-vos, mulher do demónio, respondeu ele de imediato, ao mesmo tempo
que a segurava pelos ombros com um braço e lhe tapava a boca com uma mão. E
prosseguiu na ofensa, já com ela dominada: sois obra do Diabo; sois a tentação
do pecado, mulher impúdica. Incapaz de se libertar da força bruta do clérigo, a
judia começou aos poucos a perder o fôlego, o ânimo, talvez até a noção da
própria vida. E foi então, estava ela quase a desfalecer, que Petrini a
arrastou para debaixo de um alpendre no pátio do peristilo, tentando aí, depois
de levantar a sebenta sotaina, violá-la e agredi-la com palavras de
irreprimível desejo e ódio cego. Ah, mulher demoníaca que tanto me tentais...,
continuou ele na sua depravada litania. Mas eis que por sorte ou por milagre
surgiram no local, naquele preciso momento, o cardeal Pietro Bembo, secretário
de Estado da cúria romana, e três jovens padres. Que estais a fazer, homem
herético!, gritou o cardeal Bembo, levando as mãos à cabeça.
Surpreendido, Francesco Petrini
largou a mulher à pressa, recompôs-se de imediato e disse atabalhoadamente que
fora ela, filha do pecado e do demónio, a tentá-lo. Levai-o daqui já, ordenou,
indignado, o cardeal aos sacerdotes que o acompanhavam. Levai o depravado e ide
entregá-lo aos guardas do castelo, que eles saberão dar-lhe o merecido destino.
Não façais isso, monsenhor, berrou o bispo. O episódio despertou um enorme
alvoroço entre os padres e as religiosas que, no interior da capela, procediam
aos trabalhos de adorno e embelezamento. Alertados pelos gritos, todos
acorreram com velas acesas ao pátio das traseiras, onde se depararam com a
jovem desmaiada, o cardeal enfurecido e os sacerdotes a conduzirem o bispo
pelos braços, com a sotaina rasgada e suja, à tenda dos guardas do castelo. Faltava
apenas saber quem era a vítima.
É portuguesa e reside na casa das
Seculares Reparadoras da Virgem das Dores, informou uma das religiosas do grupo
que assistiu à reunião da tarde, no anexo de Sant’Angelo. Oh, meu Deus!,
exclamou o cardeal Bembo, antes de se benzer e de se dirigir às mulheres à sua
volta. Portuguesa, ainda por cima... Despertai-a; tratai-a com enlevo e levai-a
depois a sua casa. E a todas pediu segredo.
Na manhã do dia seguinte, por
santíssima ordem do Sumo Sacerdote, Francesco Petrini foi despojado do cargo,
do título, da sotaina, e entregue ao poder secular para lhe ser aplicado o
castigo de sangue que a hierarquia espiritual, por cautelas e preconceito, não
gostava de exercer, ou, alternativamente, ser lançado à execração pública». In
José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN
978-989-555-364-8.
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