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«(…) Ainda não tinha passado meia
hora e já o professor espirrava, tossia e tremia. Sem perda de tempo, Leonor
levantou-se do banco e foi imediatamente preparar uma dose de sumo de erva
primavera para o lente inalar e se prevenir contra a febre e a doença. Depois
pediu a Briolanja que aquecesse um vaso de água com vinagre para ele lavar as
feridas antes de recolher aos aposentos, que a própria haveria de lhe indicar. Eu
não mereço tanta maçada, senhora dona Leonor Teles. Por quem sois, senhor,
exclamou, nervosa. Apenas desejo que não sinta falta de nada. Os livros, esses,
é que é pior..., mas também se pode resolver o problema, se assim o entender, e
então mandarei a Coimbra um homem de confiança buscar uma cópia à Universidade
ou ao sítio que o senhor Vicente mencionar. Isso é impossível, minha estimada
senhora!, atalhou ele com ar constrangido. Eu é que tenho de ir a Coimbra falar
com o bacharel, senhor cónego Gonçalo Migueis, e com o senhor bispo, Vasco
Fernandes de Toledo, para lhes dar conta da situação e para serem eles depois a
pedir novos exemplares a Roma ou a Santiago de Compostela. A situação é mais complicada
do que parece. Leonor Teles ficou sem palavras, em silêncio, perdida no
interior da alma e abalada por horríveis sentimentos de ódio e nojo pelos
canalhas da arraia-miúda que molestaram o lente. Podiam-lhe ter batido,
levarem-lhe o capeirote, o cavalo e ficarem-se por aí. Mas roubarem-lhe os
livros?! Para quê? Tamanho o asco sentido naquele momento de incontrolável desespero
que mal pôde evitar um grito de revolta não pelo roubo dos livros, cuja importância
era de pouca monta para ela, mas pelo facto de tão desagradável circunstância
poder vir a deitar por terra a hospedagem em sua casa do ilustre professor, por
quem se sentia vagamente atraída desde a primeira hora em que o viu. Malditos
plebeus!, exclamou. São pobres, profundamente miseráveis, condescendeu o lente.
Mas incorrigíveis criminosos.
Durante seis dias, a senhora do
morgado de Pombeiro tratou o professor com inexcedível zelo e indisfarçável
ternura, sendo ela mesmo a levar-lhe à cama a comida e as mezinhas para o
tratamento da maleita. Às vezes, durante a noite, chegava a levantar-se para ir
encostar o ouvido à porta dos aposentos de Vicente Esteves, de modo a
certificar-se de que ele estava vivo ou, talvez, quem sabe, pôr à prova a
capacidade de resistir ao apelo do pecado. Na madrugada anterior ao previsível
dia de regresso do marido a Pombeiro, já o lente tinha recuperado da tosse e da
febre, Leonor Teles não conseguiu aguentar mais a ansiedade e, à coberta da
noite e sem ruído, entrou de mansinho na câmara de Vicente Esteves, que acabara
de despertar de um medonho pesadelo. Senhor...
Senhora, respondeu ele, incrédulo,
ao mesmo tempo que se erguia e se apoiava na dobra dos cotovelos. Sente-se bem?,
perguntou ela, tentando disfarçar a agitação que se apoderara de si como o
sintoma da Peste Negra. Sinto-me bem, sim; apenas sonhei que fui envenenado
pela sua ama, segredou o professor, já a morgada estava junto à cabeceira. Credo!
Abrenúncio!, exclamou, assustada. Pela janela dos aposentos entrava a essa hora
uma centelha de luz, muito pálida, muito ténue, mas generosamente cedida pela
fogueira no pátio da casa para a queima do lixo de várias semanas, permitindo
assim a um e a outro distinguirem-se e identificarem os objectos que os
rodeavam. Senhora... Não diga nada, interrompeu Leonor, de súbito, enquanto se
debruçava sobre Vicente Esteves para um demorado beijo. Depois, levada pela tentação
do gosto e do Demónio, levantou devagarinho os cobertais de papa e de penas,
enfiou-se na cama e aos poucos enroscou-se nele.
Instantes passados, aproveitando
uma pausa do comum delírio, o lente ciciou: estou a viver um sonho. Que não é o
do veneno... Não! É o do amor. Num impenitente estado de desassossego, despidos
já da roupa, do medo e da vergonha, os dois amantes voltaram a beijar-se. E foi
então no movimento ondular dos corpos e de muitos beijos que se cumpriram na urgência
do milagre mais perfeito daquela noite de esplendor. Para ambos, talvez mais
para Leonor Teles do que para o lente, consumara-se, enfim, no espaço destinado
à ofensa e à perfídia, uma longa espera para uma oportunidade tão breve. Gostava
de ser o seu morgado, segredou o lente após o feito. Preferia que fosse o meu
rei para eu ser a sua rainha, atalhou Leonor, com um sorriso irónico que mal se
distinguia na penumbra dos aposentos.
Transbordando de contentamento e
sensibilizado com o voto que acabara de ouvir, Vicente Esteves, com ar muito cândido,
voltou a segredar: se fosse rainha não me importaria de ser o mais humilde
servo da sua corte. Quase à hora do despertar da aurora, em que eram já perceptíveis
os sinais de vida no exterior da casa, Leonor Teles foi a custo para os seus aposentos
e Vicente Esteves também a custo ficou nos dele, entregando-se ao sonho e à
imagética. Se por um lado sentia uma enorme felicidade naquela hora única,
quanto mais não fosse pelo facto de se ter achado senhor do mais rico reino do
pequeno mundo que conhecia, por outro lado tinha medo de que por qual quer
desgraçada circunstância ou denúncia dos demónios João Lourenço Cunha viesse a
saber da traição e o mandasse liquidar». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina
do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
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