quarta-feira, 8 de abril de 2020

Eu e as Mulheres da Minha Vida. Tiago Rebelo. «Foi almoçar sozinho, ali a dois passos do banco, numa pastelaria na Avenida da Liberdade que servia uma sopa do dia catita e uns croquetes aceitáveis»

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O Factor Bellucci
«(…) Pronto, tinha a manhã estragada. Mas porque é que não mandava o Pestana pôr-se na alheta quando o tipo o vinha chatear? Zé sabia bem a resposta: porque não era capaz de ofender ninguém, porque és um tanso!!!, pensou, desconcertado. Dez horas. Ainda não tinha feito nada, nadinha, nem sequer escrevera uma vírgula. Já sabia que ia ficar perturbado o resto do dia por causa daquilo do Pestana. O que o incomodava não era o Pestana, era a sua própria incapacidade para responder às provocações do colega. Bom dia, Figueiredo. Bom dia, chefe. Aquele dossier da agência de Setúbal já está pronto? Praticamente, chefe. Veja lá, Figueiredo, que eu preciso disso para ontem. Esteja descansado, chefe. Quando o chefe pedia alguma coisa, era sempre para ontem, mesmo quando não era. O chefe era todo palmadinhas nas costas, todo sorrisos hipócritas, mas sempre a lixar-lhe a vida. Desculpe lá Figueiredo, mas este ano não há aumentos para ninguém, só reajustamentos. Se não fosse aquela coisa da guerra do Iraque. Mas vai ver que para o ano já estaremos melhor. Para o ano, ah! No ano passado tinha sido a mesma conversa, mas com aquela coisa do 11 de Setembro tudo servia de desculpa para enrolar os sindicatos nas negociações. Se o banco passara alguma vez por uma aflição, Zé nunca tinha dado por nada. Tretas. Por isso, o chefe que esperasse pela porcaria do relatório da agência de Setúbal. Não há dinheiro, não há palhaços, e este palhaço vai mas é almoçar, pensou Zé. Mas olhou para o relógio e ainda nem era meio-dia. Bom, não podia sair já, mas também não tencionava fazer a ponta de um cor…, até à uma da tarde.
Foi almoçar sozinho, ali a dois passos do banco, numa pastelaria na Avenida da Liberdade que servia uma sopa do dia catita e uns croquetes aceitáveis. Sentou-se numa mesa solitária a cismar com o Pestana, preocupado com a possibilidade de o colega ter contado aos outros que o apanhara com um papelinho na cara e lhe chamara cara de cu. Pensando melhor, o mais provável era o Pestana nem se ter lembrado mais disso. Zé tinha aquela tendência para achar que as pessoas estavam sempre a julgá-lo e a falar dele nas costas. Chama-se a isso insegurança, recriminou-se. Olhou para a porta da pastelaria e viu a Bellucci. Ficou com a colher da sopa a meio da boca aberta, a mão a tremer e o coração exaltado. A Bellucci era a brasa da contabilidade, olhos castanhos amendoados, sobrancelhas finas, cabelo castanho liso, um pouco abaixo dos ombros, nariz afilado e lábios carnudos, maminhas durinhas a apontar para o céu, e umas pernas compridas que não podiam ser reais. Chamava-se Cátia e era parecida com a Monica Bellucci, a actriz italiana que fazia de Cleópatra no último Astérix & Obélix. Por isso lhe tinham dado aquela alcunha no banco». In Tiago Rebelo, Eu e as Mulheres da Minha Vida, 2003, Edições ASA, 2016, ISBN 978-989-233-501-8.

Cortesia de EASA/JDACT