quinta-feira, 30 de abril de 2020

Melo Antunes. Maria Manuela Cruzeiro. «Sim, foi definitiva. E contemporaneamente começou a minha atracção pelos estudos que não eram exactamente aqueles que constituíam o currículo científico ou paracientífico…»

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O Sonhador Pragmático
«(…) Bern, mas, voltando à infância, conservo na memória muitíssimos episódios e lembro-me perfeitamente do que foi a minha vida no interior de Angola, as idas no Verão para a praia, no Lobito ou em Luanda, onde tive perfeita noção do que eram as relações, se quiser, de colonizador/colonizado, naquela época, e até as marcas de racismo que havia nessas relações. E. portanto, acho que isso teve uma importância fundamental na formação da minha consciência.

O ambiente em casa, uma vez que é filho de um oficial do Exército, era de aceitação total dessas regras?

Não..., embora os meus pais fossem conservadores. O meu pai era particularmente adepto do regime vigente, mas tinha uma formação humanista, que o fazia distinguir entre as opções políticas, digamos assim, de apoio ao salazarismo e as relações humanas. Por isso penso que também terei sido influenciado por essa visão humanista dos meus pais, que muito me ajudou. Posso contar um episódio passado em Quibala. terra do interior de Angola, onde o meu pai estava colocado. Uma vez, lembro-me perfeitamente de ter ido buscar-me à escola, como de costume, um dos criados lá de casa, um dos impedidos, um cuanhama altíssimo, fortíssimo, como são os homens do Sul de Angola, e eu entendi que estava suficientemente cansado para ir às costas dele cerca de um quilómetro e tal, fazendo ele de cavalo e eu de cavaleiro. Quando cheguei a casa, o meu pai zangou-se fortemente comigo. Eu fiz aquilo, de facto, mas era criança, não me dava conta de que era uma violência o que estava a cometer. O que significa que, na realidade, como em muitas outras ocasiões, ele defendia uma relação que não era normal entre colonizador e colonizado, quer dizer, tinha uma visão que, repito, chamo de humanista e que, penso, teve influência na minha formação.

Lembra-se de mais algum episódio que recorde particularmente?

Eu poderia falar de tantas coisas..., assisti muitas vezes a actos de violência cometidos sobre negros… Tenho na memória muitas dessas cenas de violência. Sei lá, eram sobretudo comerciantes e camionistas, ou gente mais ou menos ligada ao sector comercial, como os transportes, etc., é essa pelo menos a ideia que tenho mais viva. Cenas de violência, de discriminação... São muitíssimas as coisas de que guardo memória.

Essa experiência de infância, entre os seis e os nove anos, que o marcou profundamente, terá sido posteriormente enquadrada, como diz, política e ideologicamente. Mas não parece que tenha sido decisiva para a escolha da sua profissão futura.

Não, aí não, quer dizer... eu, de certa maneira, fui forçado a seguir a carreira militar. Eu, a partir dos meus catorze, quinze anos, comecei a ter crises graves no interior da família porque...

Desculpe interromper, senhor coronel, quantos irmãos tem?

Mais um, mais novo. Nasceu já depois de eu vir de Angola, faz uma diferença de nove anos de mim.

E seguiu também a carreira militar?

Não, é engenheiro.

Falava então dessas crises no seio familiar.

Sim, crises que começaram na adolescência, como é normal, entre os catorze e os quinze anos. Foi a crise religiosa antes de mais nada. Os meus pais, em especial o meu pai, era um homem profundamente religioso, profundamente devotado à Igreja Católica, e aceitou bastante mal, ou por outra, não aceitou, a minha crise religiosa. De forma que começaram os conflitos, que são frequentes nessa fase da vida, mas que talvez no meu caso fossem bastante críticos em determinado momento, visto que a seguir à crise religiosa vem a perda da fé se assim se pode dizer...

E foi definitiva essa perda?

Sim, foi definitiva. E contemporaneamente começou a minha atracção pelos estudos que não eram exactamente aqueles que constituíam o currículo científico ou paracientífico, se assim se pode chamar, que era o sétimo ano dos liceus de ciências (a alínea f). Eu gastava o meu tempo com as literaturas, com a história, com a filosofia, com a sociologia e, obviamente, também com a política, naquilo que era possível, visto que, como se sabe, naquela altura era muito difícil o acesso a bibliografia que nos pudesse informar de forma completa». In Maria Manuela Cruzeiro, Melo Antunes, O Sonhador Pragmático, Editorial Notícias, 2004, 2005, ISBN 972-461-563-4.

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