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Alcoólicas
[…]
VI
«Vem, senhora, estou só, me diz a
Vida.
Enquanto te demoras nos textos eloquentes
Aqueles onde meditas a carne,
essa coisa
Que geme sofre e morre, ficam
vazios os copos
Fica em repouso a bebida, e tu
sabes que ela é mais viva
Enquanto escorre. Se te demoras,
começas a pensar
Em tudo que se evola, e cantarás:
como é triste
O poente. E a casa como é antiga.
Já vês
Que te fazes banal na rima e na
medida.
Corre. O casaco e o coturno estão
em seus lugares.
Carminadas
e altas, vamos rever as ruas
E como dizia o Rosa: os olhos nas
nonadas.
Como tu dizes sempre: os olhos no
absurdo.
Vem.
Liquidifica o mundo.
VII
Mandíbulas. Espáduas. Frente e
avesso.
A Vida ressoa o coturno na
calçada.
Estou mais do que viva:
embriagada.
Bêbados e loucos é que repensam a
carne o corpo
Vastidão e cinzas. Conceitos e
palavras.
Como convém a bêbados grito o inarticulado
A garganta candente, devassada.
Alguns se ofendem. As caras são
paredes. Deitam-me.
A noite é um infinito que se
afasta. Funil. Galáxia.
Líquida e bem-aventurada,
sobrevôo. Eu, e o casaco rosso
Que não tenho, mas que a cada
noite recrio
Sobre
a espádua.
VIII
O casaco rosso me espia. A lã
Desfazida por maus tratos
É gasta e rugosa nas axilas.
A frente revela nódoas vivas
Irregulares, distintas
Porque
quando arranco os coturnos
Na alvorada, ou quando os coloco
rápida
Ao crespúsculo, caio sempre de
bruços.
A Vida é que me põe em pé. E a
sede.
E a saliva. A língua procura
aquele gosto
Aquele seco dourado, e acaricia
os lábios
Babando impudente no casaco.
É bom e manso o meu casaco rosso.
Às vezes grita: ah, se te
lembrasses de mim
Quando
prolixa. Lava-me, hilda.
IX
Se um dia te afastares de mim,
Vida, o que não creio
Porque algumas intensidades têm a
parecença da bebida
Bebe por mim paixão e
turbulência, caminha
Onde houver uvas e papoulas
negras (inventa-as)
Recorda-me, Vida: passeia meu
casaco, deita-te
Com aquele que sem mim há-de
sentir um prolongado vazio.
Empresta-lhe meu coturno e meu
casaco rosso: compreenderá
O porquê de buscar conhecimento
na embriaguês da via manifesta.
Pervaga. Deita-te comigo.
Apreende a experiência lésbica:
Estilhaça
a tua própria medida».
[…]
Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa
Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.
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