Cortesia
de wikipedia e jdact
Histórias
Marginais
«(…) Ignoro quanto tempo
permaneci diante daquela pedra, mas, à medida que a tarde caía, vi outras mãos repetindo
a inscrição para evitar que o pó do esquecimento a cobrisse: uma russa, Vlaska,
que diante do seco esqueleto do Mar de Aral me contou a sua luta para impedir
aquela loucura que culminou com a morte de um mar cheio de vida. Um alemão,
Friedrich Niemand, Frederico Ninguém, que foi declarado morto em 1940 e que até
1966 gastou as solas dos sapatos visitando ministérios e templos burocráticos
para demonstrar que estava vivo. Um argentino, Lucas, que, farto de discursos
hipócritas, se decidiu a salvar as matas da Patagónia andina sem outra ajuda além
da das próprias mãos. Um chileno, o professor Gálvez, que, num exílio que nunca
compreendeu, sonhava com a sua velha sala de aulas e acordava com os dedos
cheios de giz. Um equatoriano, Vidal, que suportava as sovas dos senhores da
terra encomendando-se a Greta Garbo. Uma uruguaia, Camila, que aos setenta anos
decidiu que todos os rapazes perseguidos eram seus parentes. Um italiano,
Giuseppe, que chegou ao Chile por engano, casou por engano, teve os seus
melhores amigos por engano, foi feliz por causa de outro engano enorme e
reivindicou o direito de se enganar. Um bengali, mister Simpah, que ama os
barcos e os leva a desmantelar repetindo-lhes as belezas dos mares que
sulcaram. E o meu amigo Fredy Taberna, que enfrentou os seus assassinos
cantando... Todos eles e muitos mais estavam ali, repetindo as palavras
gravadas numa pedra, e compreendi que tinha de contar as suas histórias.
Noite na Selva Aguaruna
Não conheço aquele homem parado
na margem do rio, respirando fundo e sorrindo ao reconhecer os odores que
viajam pelo ar. Não o conheço, mas sei que aquele homem é meu irmão. Aquele
homem que sabe que o pólen viaja preso à arbitrária vontade do vento, mas
confiante e a sonhar com a fértil terra que o espera, aquele homem é meu irmão.
E o meu irmão sabe muitas coisas. Sabe, por exemplo, que um grama de pólen é
como um grama de si mesmo, docemente predestinado ao lodo germinal, ao mistério
daquilo que se erguerá vivo de ramos, de frutos e de filhos, com a bela certeza
das transformações, do começo inevitável e do necessário final, porque o que é imutável
encerra o perigo do eterno, e só os deuses têm tempo para a eternidade. Aquele
homem que empurra a sua canoa sobre a praia de areia fina e se prepara para
receber o milagre que em cada entardecer abre na selva as portas do mistério,
aquele homem é necessariamente meu irmão. Enquanto a subtil resistência da luz
diurna se deixa vencer amorosamente pelo abraço da penumbra, escuto-o a
murmurar as palavras exactas que a sua embarcação merece: encontrei-te quando não
passavas de um ramo, limpei o terreno que te rodeava, protegi-te do caruncho e
da térmita, orientei-te a verticalidade do tronco e, ao deitar-te abaixo para
fazer de ti o meu prolongamento na água, a cada machadada marquei também uma cicatriz
nos meus braços. Depois, já na água, prometi que havíamos de continuar juntos a
viagem começada no teu tempo de semente. E cumpri. Estamos em paz. Então,
aquele homem vê como tudo muda, como se transforma no preciso instante em que o
sol se cansa de ser mil vezes diminuto, multiplicado nas escamas de ouro que os
ribeiros arrastam.
A floresta apaga a sua intensa
cor verde. O tucano fecha o brilho das suas penas. As pupilas do quati deixam
de reflectir a inocência dos frutos. A infatigável formiga suspende a transferência
do mundo para a sua cónica morada. O jacaré decide abrir os olhos para que as
sombras lhe mostrem aquilo que evitou ver durante o dia. O correr do rio
torna-se tranquilo, ingénuo da sua terrível grandeza». In Luis Sepúlveda, As Rosas de
Atacama, 2000, Porto Editora, 2020,
ISBN 978-972-0-04091-6.
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