domingo, 19 de abril de 2020

A Solidão dos Números Primos. Paolo Giordano. «Pois, porquê? Pensando bem era melhor a hipótese de ter perdido o passe. Não voltara a subir porque o homem do teleférico não deixara. Alice sorriu, satisfeita com a sua história»

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O Anjo da Neve
«(…) Já deve ter ido para o skilift, aquela pateta, respondeu um rapazito em vez dela. Alice ouviu um vociferar. Alguém disse, vamos a outrem que tinha frio por estar parado. Tanto podiam estar ali em baixo a poucos metros como ainda junto à saída do teleférico. Os sons enganam, ressaltam nas montanhas, afundam-se na neve. Ora bolas para ela…, vamos ver, disse Eric. Alice contou lentamente até dez, embargando a vontade de vomitar que o emplastro mole a escorrer-lhe pelas coxas lhe causava. Assim que chegou a dez começou do princípio e contou até vinte. Já não se ouvia ruído algum. Pegou nos esquis e carregou-os nos braços até à pista. Levou algum tempo a perceber como teria que os pôr para estar perpendicular à linha de pendência máxima. Com um nevoeiro do género nem se percebe para que lado se está virado. Enganchou as botas nos esquis e apertou as juntaras. Desceu a viseira e cuspiu nela por dentro para a desembaciar. Podia descer ao vale sozinha. Não queria saber se Eric andava à procura dela no cume do Fraiteve. Ela não queria estar dentro daquelas meias-calças todas borradas um segundo a mais do que o necessário. Pensou no percurso. Nunca descera sozinha, mas, enfim, metera-se sozinha no teleférico e fizera aquela pista dezenas de vezes.
Começou a descer estilo limpa-neve, era mais prudente, e de pernas alargadas tinha a sensação de estar menos borrada. Ainda no dia anterior Eric lhe havia dito se te vejo a fazer mais alguma curva estilo limpa-neve juro que te ato os dois tornozelos. Ela tinha a certeza de que Eric não gostava dela. Devia achá-la uma caguinchas. E os factos, no fim de contas, davam-lhe razão. Eric também não gostava do pai dela pois, todos os dias, no fim da aula, o moía com um milhão de perguntas. Então, como é que vai a nossa Alice, então estamos a melhorar, então, temos uma campeã, então, quando é que começam as competições, então, isto, então, aquilo. Eric fixava sempre um ponto por cima dos ombros do pai dela e respondia que sim, não, ou então, com longos eh.
Alice via a cena toda a passar-lhe pela viseira cheia de nevoeiro, enquanto descia lentamente, sem conseguir enxergar mais que a ponta dos esquis. Só quando ia parar à neve fresca é que percebia que era o momento de curvar. Pôs-se a cantarolar uma canção para se sentir menos só. De vez em quando passava a luva pelo nariz para enxugar o pingo. Peso atrás, espeta o bastão e gira. Apoia-te nas botas. Agora, peso à frente, percebes? Pe-so-à-fren-te, sugeriam-lhe Eric e o pai. O pai ter-se-ia zangado com ela, como uma fera. E ela tinha de arranjar uma mentira. Uma história que se aguentasse de pé sem falhas ou contradições. Não sonhava sequer contar-lhe aquilo que realmente lhe havia acontecido. O nevoeiro, isso mesmo, era culpa do nevoeiro. Ia atrás dos outros na pista do slalom gigante quando o passe de esqui se soltara do blusão. Aliás, não. O passe não se solta do blusão de ninguém. É preciso ser-se mesmo muito idiota para o perder. É melhor o cachecol. O cachecol caíra-lhe do pescoço e ela voltara atrás para o ir buscar, mas os outros não esperaram por ela. Chamara-os vinte vezes mas eles nada, tinham desaparecido no nevoeiro e, então, ela voltara para o vale à procura deles. E por que é que não voltaste a subir, perguntar-lhe-ia o pai.
Pois, porquê? Pensando bem era melhor a hipótese de ter perdido o passe. Não voltara a subir porque o homem do teleférico não deixara. Alice sorriu, satisfeita com a sua história. Não tinha uma falha. Já nem se sentia tão suja. Aquela coisa deixara de pingar. Provavelmente ficou congelada, pensou. Iria passar o resto do dia colada à televisão. Tomaria um duche, vestiria roupa lavada e enfiaria os pés nas suas pantufas felpudas. Ficaria no quentinho o tempo todo se tivesse tirado ligeiramente os olhos dos esquis, aquele pouco suficiente para ver a faixa alaranjada que dizia Pista encerrada». In Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, 2008, tradução de José Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-251-834-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT