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11 de Setembro de 1683
«Os homens do Bargello (responsáveis
pela ordem pública e, por extensão, a sede onde residiam, também equipada com prisão)
apresentaram-se ao fim da tarde, no preciso momento em que eu acendia a tocha que
iluminava a nossa insígnia. Nas mãos traziam tábuas e martelos; e selos, e correntes,
e pregos enormes. À medida que avançavam pela via dell’Orso, vociferavam e gesticulavam
imperiosos para dar a entender aos transeuntes e aos grupos de pessoas que desimpedissem
a rua. Chegados junto a mim, começaram a esbracejar: todos para dentro, todos
para dentro, temos de fechar o estabelecimento!, gritou aquele que dava ordens.
Ainda não tivera tempo para descer
do banco a que tinha subido e já umas mãos poderosas me empurravam com brutalidade
pela entrada, enquanto outros se postavam de maneira ameaçadora a bloquear a porta.
Fiquei atordoado. Despertaram-me bruscamente as pessoas que, ao ouvirem os gritos
dos oficiais, se tinham ajuntado à entrada como um relâmpago vindo do nada. Eram
os pensioneiros da nossa estalagem, conhecida como estalagem do Donzel. Eram apenas
nove e estavam todos presentes: esperavam que fosse servido o jantar e, como todas
as noites, passeavam no rés-do-chão entre as otomanas do átrio e as mesas das
duas salas de refeição contíguas, fingindo-se absorvidos por uma coisa e outra;
mas, na realidade, todos gravitam em redor do jovem pensioneiro francês, o músico
Roberto Devizé, que com grande habilidade se exercitava à guitarra.
Deixai-me sair! Ah, como ousais? Tirai
as mãos de cima de mim! Não posso cá ficar! Estou de excelente saúde,
percebestes! De excelente saúde! Deixai-me passar, já vos disse! Quem assim gritava
(consegui entrevê-lo por detrás da floresta de lanças com que os homens de
armas o vigiavam) era o padre Robleda: o jesuíta espanhol, nosso pensioneiro, que,
tomado pelo pânico, começara a bradar ficando com a respiração curta e o pescoço
vermelho e inchado. A cena fez-me recordar os gritos dos porcos quando ficam pendurados
de cabeça para baixo e são mortos. A barulheira reboava pela rua e, parecia-me,
até à praceta, que espontaneamente se tinha esvaziado num abrir e fechar de
olhos. Do outro lado da estrada entrevi o peixeiro e os dois criados da vizinha
estalagem do Urso que observavam a cena.
Vão fechar-nos, gritei-lhes
tentando fazer-me ver, mas os três ficaram impassíveis. Um vinagreiro, um vendedor
de neve e um pequeno grupo de rapazitos, cujos gritos animavam a rua até há alguns
momentos, esconderam-se amedrontados ao dobrar da esquina. Entretanto, o meu
patrão, o senhor Pellegrino de Grandis, dispôs uma banca no limiar da
estalagem. Um oficial do Bargello colocou em cima da banca o livro de registo
dos pensioneiros, que tinha acabado de exigir, e deu início à chamada. Padre Juan
de Robleda, de Granada.
Como nunca tinha assistido a um fecho
de estabelecimento por quarentena, e como nunca ninguém me tinha falado a tal respeito,
pensei de início que nos quisessem prender. Isto está a ficar feio, isto está ficar
feio, sibilou Breoozzi, o veneziano. Apareça, padre Robleda!, gritou impaciente
o oficial que fazia a chamada. O jesuíta, estatelado no chão após lutar em vão
com os homens armados, levantou-se e depois de ter verificado que todas as saídas
estavam bloqueadas por lanças, respondeu à chamada erguendo a mão peluda. Foi
de imediato empurrado para junto de mim. Era o padre Robleda. Viera de Espanha há
alguns dias e, por causa dos acontecimentos, desde manhã que vinha submetendo a
dura prova os nossos ouvidos com os seus gritos de medo.
Abade Melani, de Pistoia!, chamou
o oficial olhando para o livro de registo dos pensioneiros. Os rendilhados à moda
francesa que adornavam o pulso do nosso pensioneiro mais recente, chegado ao
amanhecer, fenderam a sombra. Ergueu a mão diligentemente ao ouvir o seu nome, e
os seus pequenos olhos triangulares brilharam como estiletes saindo da sombra. O
jesuíta não mexeu um músculo para se afastar quando Melani, num andamento
solene, tranquilo e silencioso, se juntou a nós. Tinham sido precisamente os gritos
do abade, nessa manhã, a dar o alarme». In Monaldi & Sorti, 2002, Editorial
Presença, 2004, ISBN 972-233-286-4.
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