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«(…) As
andorinhas, desde este dia, voaram desapercebidas para mim. Desci a vista do
céu para as coisas deste mundo. A vaidade começou a materializar-me. Parecia-me
repugnante e baixa a comparação de um homem com um pássaro. Enquanto me não
disseram que o pé e a mão delicada eram condições de um nascimento ilustre,
imaginei-me filho de sapateiro, de soldado raso e de aguadeiro. Depois, nunca
mais. Aquela Isabelinha dourou-me a imaginação, engrandeceu-me o espírito e enfureceu-me
de uma vaidade que eu já não podia esconder aos meus condiscípulos. Foi péssima
a ocasião em que eles vieram chasquear-me o nome de chato e pardo! Nesse dia,
em que eu lamentava a baixeza do meu nome, e chegara a convencer-me de que João
era um nome ignóbil, um nome de carreteiro e de gaiato, vieram eles insultar-me
na minha solidão. O mais desabusado, e também o mais comprido em sobrenomes
heróicos, cruzou os braços em postura dramática, diante de mim, e disse com um
sorriso de escárnio: João! João! João!, três vezes João! Porque te não crismas,
infeliz?! Os teus condiscípulos lamentam o infortúnio de contarem no seu grémio
um companheiro chamado João! Lava-lhes esta afronta, se podes! Encarei primeiro
com desprezo este orador; depois respondi com presença de espírito e azedume: não me admirava que rapazes da minha idade
viessem zombar do meu nome; mas o senhor, que tem vinte e dois anos, é coisa
que me faz mais compaixão que zanga! Porque não aproveita melhor o seu tempo,
tirando significados e amigando-se com o Virgílio, seu inimigo cruel?
Esquece-se que foi reprovado em latim no ano passado, e que há-de sê-lo no ano
que vem, se gastar o seu tempo a compor discursos para fazer rir os meus
condiscípulos à minha custa?
Esta
resposta irritou o meu adulto companheiro, muito mais porque os meus
condiscípulos, que tinham vindo para se rirem de mim, riram-se dele. Com os
olhos a fuzilarem raiva, chegou-se ao pé de mim, e puxou-me uma orelha
desapiedadamente. A dor senti-a forte, mas a dor moral, a vergonha, não me
pungia menos. Conheci então, pela primeira vez, o desejo da vingança. A
primeira coisa que estava ao pé de mim era um vaso pequeno com um cato eriçado
e espinhoso como um cedeiro. Dei-lhe com ele na cara. E devia ser insofrível a
dor que lhe fez, porque o taludo gracejador levou as mãos à cara e não fez
contra mim o mais ligeiro movimento. Os condiscípulos ficaram pasmados e
silenciosos. Eu passei por entre eles com um pueril orgulho de uma acção
legitimamente nobre, e recolhi-me ao meu quarto a recapitular o primeiro
capítulo da minha Mada.
Não me
deixaram só muitos minutos. Dona Antónia, colérica e descomposta, entrou de
repente. O que eu coligi do seu grasnido foi que uma tremenda justiça ia ser
feita em mim, logo que o padre recolhesse. Arrefecidos os calores do meu gentil
esforço, comecei a ter medo do mestre. Parece que o coração se me despegava,
quando soavam passos na vizinhança do meu quarto. Invoquei todos os recursos da
resignação para suavizar o castigo, que me atormentava em perspectiva.
Imaginei-me com um braço quebrado, com uma gorilha ao pescoço, com oito dias de
pão e água, com o ódio do padre eternamente irritado contra mim. Quis transigir
evangelicamente com todas estas torturas, mas não houve nada que diminuísse a
sezão do medo. Senti febre! O susto parece que não me pisava os ossos, e
macerava as carnes. Era uma doença indefinível aquela minha!
O que eu
sei é que caí sobre a minha cama, alquebrado e esvaído, como se uma catapulta
me atirasse para ali. Não sei o tempo que decorreu desde que me deitei até que
abri os olhos do entendimento para conhecer o padre, e a irmã, e o cirurgião da
casa. Pensei que sonhava. O cirurgião punha-me a mão na testa e apalpava-me o
pulso. O padre olhava-me com ar de bondade. E dona Antónia pregava os olhos,
com ansiedade, na cara do cirurgião. Então que tens, João?, perguntou o mestre
em tom amigável. Não sei, senhor padre-mestre, respondi eu, mentindo como
convinha. Bateram-te?, disse ele. E eu calei-me, porque não sabia se era
conveniente dizer a verdade. Bateram-te, João?, replicou o mestre, descendo a
voz à nota baixa da severidade. Quase nada, respondi eu, naturalmente a tremer
uma segunda sezão. E o facultativo, que tinha debaixo dos dedos as pulsações do
meu sangue, reconheceu a influência patológica que tinham em mim as perguntas
do padre». In Camilo Castelo Branco, Mistérios de Lisboa, 1854, Edições Quidnovi, 2010, ISBN 978-989-628-187-8.
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