Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Pensava ele nisto; e ela isto esperava, mas sem ansiedade nem receio de perder
um bem que pouco viria aumentar a sua felicidade. Os fidalgos parentes de
Marcos e os plebeus de Maria, esses é que não pensavam em tão insólito desfecho
do drama em si muito trivial. A fuga poucos dias falada de uma rapariga popular
para os transitórios gozos de um rapaz de superior linhagem, era caso que
podia, quando muito, entreter a palestra das famílias ilustres, à noite, entre
duas chávenas de chá. Em comiseração da mocinha malfadada aconteceria dizer uma
fidalga velha: pobre rapariga! Vai perdida... Daqui a pouco, se o lojista pai a
não receber, irá servir, se houver quem a queira; se não... Que não fosse tola!,
exclamaria uma fidalga donzela e sacudida de gestos e virtudes. Estas gentalhas
do negócio querem sair da forma do seu pé... Bem feito! Quem nas manda olhar
para mancebos da qualidade do primo Marcos?
Os velhos
e velhas aplaudiam estas razões sumárias da donzela, provavelmente. E nunca
mais se falava em casos análogos; até que, no máximo deles, um noticiador,
entre as duas chávenas de chá, diria: Pedro ou Sancho deixou a filha do
alfaiate e deu aposentadoria à filha do marceneiro. Está um estroina da
primeira ordem, o maganão! Riso breve e silêncio por causa das meninas
solteiras que se arredavam a cochichar e a casquinar com tamanha inocência que
dispensava o rubor.
No caso de
Marcos Freire andavam os ânimos menos descuriosos. A demora no escandaloso
enlace ia sendo já extraordinária. Três anos e um filho! E, nesse decorrer de
três anos, Marcos não se deixara levar a bailes, raro aparecia em teatros, e
nunca em natalícios de parentes se apresentara com a costumada pontualidade e
esmero da sua educação palaciana. Sobrevinham as reflexões tendentes a futurar
a possibilidade de um enorme vilipêndio. Casarem-se?!, interrogava irado
Cristóvão Freire, pai de Marcos. O meu filho casado com a filha de Tomé
Tamanqueiro!... Nem me digam que o sonharam!... Saibam que eu dei a vida a
Marcos. Não lha dei com a condição de me afrontar e matar a golpes de desonra.
Dei-lhe a vida... Sou também capaz de lhe dar a morte!
Dizia-o
por feição que parecia senti-lo, sendo ele a melhor alma do mundo e o mais
estremecido pai. Não se cansem a forjar tamanhos e tão aviltantes disparates!,
atalhava um desembargador, parente e oráculo das onze famílias hierárquicas do
Porto. A amizade que liga, há cinco anos, Marcos Freire com a sua prima Lúcia
Peixoto, autoriza-nos a esperar que tão absurdo casamento se não faça. Não
estou com a vossa Senhoria, retorquiu o major de cavalaria José Osório Amaral. A
amizade de Marcos a sua prima Peixoto não passa de amizade pura e honradíssima.
Além disso, é notório que o irmão a destina para freira bernarda, e, nesse
intento, lhe tem desfeito quantos projectos de casamento se lhe oferecem, muito
de indústria para que ela não levante os grandes prazos que lhe deixou a tia e
a terça que lhe doou a mãe: o que redundaria em desfalque de ametade da casa,
que Simão Salazar Peixoto se afez a considerar sua exclusiva de partilhas e
demandas. Mas eu, replicou o desembargador, sei de certeza que a senhora Lúcia
não quer ser freira.
Pouco
monta o querer, voltou o militar. Também eu sei isso e todos o sabemos. Chora
que é dor grande do coração ouvi-la; e quem lhe tem visto correr mais lágrimas
é o seu amigo de infância: é Marcos Freire. Ora aqui tem qual amizade os
prende: é a confidência dos desgostos, é o meigo termo com que ele cura de
consolar a prima, dando-lhe esperanças de dissuadir o irmão do sacrílego
cativeiro a que a condena, movido por baixíssimos motivos. Como querem antever
o casamento de Marcos com a sua prima?, continuou o informador. Uma novidade
lhes vou dar que será bastante a despersuadir o senhor desembargador. Marcos
tem um filho, e a madrinha desse menino é a Lúcia Peixoto. Pois ela desceu a
isso?!, exclamou Cristóvão Freire. A minha sobrinha comadre da filha de Tomé
Tamanqueiro! E madrinha de um neto do meu nobre parente Cristóvão Freire, disse
serenamente o militar que elucidava a questão e era o padrinho do filho de
Marcos.
O quê?!,
bramiu o velho fidalgo, quanto a cólera o deixava gaguejar. Meu neto! Arreda
canalha cá do meu sangue! Para ter netos mister seria que eu tivesse filhos!
Filho nenhum tenho. Esse que me chama pai, maldito seja! E quem dele como tal
ousar falar-me, não pense que setenta anos me pesam sobre o braço que ainda
pode levantar-se à altura da cara dos insultadores». In Camilo
Castelo Branco, A Doida do Candal, 1867/1888,
Edição Lello Editores, 1983, ISBN 978-972-480-687-7.
Cortesia
de ELelloEditores/JDACT