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Servos
da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da
Catalunha
«(…) Do alto da serra de
Collserola, na antiga via romana que unia Ampurias a Tarragona, Bernat contemplou
a liberdade..., e o mar! Jamais vira, nem imaginara, aquela imensidão que
parecia não ter fim. Sabia que para além daquele mar existiam terras catalãs,
porque assim diziam os mercadores, mas..., era a primeira vez que encontrava
algo de que não podia ver o fim. Por detrás daquela montanha... Depois de
atravessar aquele rio... Sempre pudera apontar um local, indicar um ponto a um
estrangeiro que perguntasse... Mirou o horizonte que se unia com as águas. Permaneceu
uns instantes com o olhar fixo na distância, enquanto acariciava a cabeça de
Arnau, aqueles cabelos rebeldes que lhe tinham crescido enquanto tinham estado
no monte.
Depois, dirigiu o olhar para onde
o mar se fundia com a terra. Cinco navios destacavam-se na orla, junto ao
ilhote de Maians. Até esse dia, Bernat apenas vira desenhos de barcos. À sua
direita elevava-se a montanha de Montjuic, também aflorando o mar; aos seus
pés, campos e planícies e, depois, Barcelona. Do centro da cidade, onde se
elevava o monte Taber, um pequeno promontório, centenas de construções
derramavam-se em redor; algumas baixas, engolidas pelas suas vizinhas, e outras
majestosas: palácios, igrejas, mosteiros... Bernat perguntava-se quantas pessoas
viveriam ali. Porque de repente Barcelona acabava. Era como uma colmeia rodeada
de muralhas, a não ser pelo lado do mar, e para lá das muralhas eram apenas
campos. Quarenta mil pessoas, ouvira dizer. Como nos vão encontrar, entre
quarenta mil pessoas?, murmurou olhando para Arnau. Serás livre, filho.
Ali poderiam esconder-se.
Procuraria a irmã. Mas Bernat sabia que antes disso teria de cruzar as portas.
E se o senhor de Bellera tivesse dado a sua descrição? Aquele sinal... Pensara nisso
ao longo de três noites de caminho desde o monte. Sentou-se no chão e agarrou
numa lebre que caçara com a balestra. Degolou-a e deixou que o sangue caísse na
palma da mão, onde tinha um pequeno monte de areia. Remexeu o sangue e a areia,
e quando a mistura começou a secar, espalhou-a sobre o olho direito. Depois,
guardou a lebre no saco. Quando notou que a pasta estava seca e não podia abrir
o olho, começou a descida em direcção ao portão de Santa Anna, na parte mais
setentrional da muralha ocidental. Ali pessoas faziam fila no caminho de acesso
à cidade. Bernat juntou-se à fila, arrastando os pés, com discrição, sem deixar
de acariciar o menino, que já estava acordado. Um camponês descalço e encolhido
sob um enorme saco de nabos voltou a cabeça para ele. Bernat sorriu-lhe. Lepra!,
gritou o camponês, deixando cair o saco e afastando-se de um salto do caminho. Bernat
viu como toda a fila, até à porta, desaparecia para as bermas do caminho, uns
para um lado, outros para o outro; afastaram-se dele e deixaram o acesso à
cidade pejado de objectos, comida, diversas carroças e algumas mulas. E, no
meio de tudo isto, os cegos que costumavam pedir junto ao portal de Santa Anna
agitavam-se, por entre gritos.
Arnau começou a chorar, e Bernat
viu que os soldados desembainhavam as espadas e fechavam as portas. Vai para a
leprosaria!, gritou-lhe alguém de longe. Não é lepra!, protestou Bernat. Espetei
um galho no olho! Olhem! Ergueu as mãos e mostrou-as. Depois, pousou Arnau no
chão e começou a despir-se Olhem!, repetiu, mostrando todo o seu corpo, forte,
inteiro e sem mácula, sem uma única chaga ou sinal. Olhem! Sou apenas um camponês,
mas necessito de um médico que me trate deste olho; senão não poderei continuar
a trabalhar. Um dos soldados aproximou-se dele. O oficial teve de o empurrar
com a espada. Parou a uns passos de Bernat e observou-o. Vira-te, indicou-lhe,
fazendo um sinal com os dedos. Bernat obedeceu. O soldado virou-se para o
oficial e fez que não com a cabeça. Da porta, com uma espada, fizeram um sinal
indicando o vulto que estava aos seus pés. E a criança? Bernat agachou-se para
apanhar Arnau. Destapou-o, com a parte direita da cara do menino encostada ao
peito, e mostrou-o na horizontal, como se o oferecesse, segurando-o pela cabeça;
com os dedos, tapou o sinal. O soldado voltou a fazer sinal que não, olhando
para a porta. Tapa essa ferida, camponês, disse-lhe. Caso contrário, não
conseguirás dar um passo na cidade.
As pessoas regressaram ao
caminho. As portas de Santa Anna abriram-se de novo e o camponês dos nabos
recolheu o seu saco sem olhar para Bernat. Este cruzou o portal com o olho
direito tapado por uma camisa de Arnau. Os soldados seguiram-no com o olhar,
mas agora, como poderia não chamar a atenção, com uma camisa a tapar-lhe metade
do rosto? Deixou a colegiada de Santa Anna à esquerda e continuou a andar atrás
das pessoas que entravam pela cidade. Virando à direita, chegou à Praça de
Santa Anna. Caminhava cabisbaixo... Os camponeses começaram a dispersar pela
cidade; os pés descalços, as alcofas e as cestas foram desaparecendo e Bernat
deu consigo a olhar para umas pernas cobertas com meias de seda de cor vermelha
como o fogo e que terminavam nuns sapatos verdes de tecido fino, sem sola,
ajustados aos pés e terminados em ponta, com um bico tão longo que dele saía
uma correiazinha de ouro que se abraçava ao tornozelo.
Sem pensar, levantou o olhar e
deparou com um homem usando um chapéu largo. Exibia uma veste negra debruada
com fios de prata e ouro, um cinturão também bordado a ouro e colares de pérolas
e pedras preciosas. Bernat ficou a olhar para ele de boca aberta. O homem virou-se
para o jovem, mas dirigiu o olhar para mais além, como se ele não existisse. Bernat
titubeou, tornou a baixar os olhos e suspirou aliviado, ao ver que o outro não
lhe prestara a menor atenção. Percorreu a rua até à catedral, que estava em
construção, e pouco a pouco começou a levantar a cabeça. Ninguém olhava para
ele. Durante um longo momento ficou a observar como trabalhavam os peões da sé:
picavam pedra, deslocavam-se pelos altos andaimes que a rodeavam, levantavam
enormes blocos de pedra com polés... Arnau reclamou a sua atenção com um ataque
de choro. Bom homem, disse a um operário que passava perto dele, como posso
encontrar o bairro dos oleiros? A sua irmã, Guiamona, casara com um deles. Segue
por esta mesma rua, respondeu-lhe o homem, apressadamente, até que chegues à próxima
praça, de Sant Jaume. Aí verás uma fonte; vira à direita e continua até chegares
à muralha nova, ao portão da Boquería. Não saias para o Raval. Prossegue junto à
muralha em direcção ao mar até ao portão seguinte, o de Trentaclaus. Aí fica o
bairro dos oleiros». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar,
2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.
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