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Carta
IV
«(…)
A cidade, como a vida, é ignóbil. Ali, tudo se vende.
Quando
custa uma virgindade? A glória? A fama? Um beijo? Uma alma? Um jantar? Um
enterro? Quem é senhor do mundo, senhor da cidade, senhor da aldeia, senhor do
campo? O dinheiro. É ele que faz cantar às almas as óperas da torpeza e do
interesse. É essa lama bendita com que se compra o céu. Para o alcançar todos
os dias o sol vê crimes inauditos e a humanidade se afadiga e sua e chora. Não
há crenças, nem escrúpulos, nem religiões. É aquela luta brutal da tela de
Rochegrosse. A honra? A honra é uma fórmula, É pagar uma letra no seu prazo com
dinheiro que se ganhou a traficar escravos; é ser torpe sem que ninguém o diga;
é roubar sem que o roubado acuse. Há mulheres sem honra que todos cortejam,
virgindades imaculadas que todos desprezam. Religiões? A religião é uma comédia
cuja representação já dura há séculos. Fez sucesso! É uma coisa fútil e
extravagante que se parece com as histórias dos gnomos e das princesas
encantadas. Quem a não tem, compra-a. Para que servem os padres senão para venderem Deus por grosso e a retalho
(Zola).
Relicários,
cultos, milagres, o céu, bênçãos, mitras, báculos, tudo isto está em leilão.
Quem oferece? Quem dá mais? Às vezes as religiões pregoam entre os homens o
Bem, a Paz e a Igualdade. Mentira, tudo mentira! Olhando bem a vida lá está
sempre no fundo a sua face austera e verdadeira, uma Saint-Barthélemy. Que tragédia risível, grotesca, bizzara
medonha, sofrida, desesperada e lancinante não é o mundo? A vida? A cidade? Lá
em baixo nas vielas sujas ou no boulevard
caro, a luz do gás, que baila a dança de S. Vito, pões lívida a carne,
lívida a alma, lívido o sentimento. Há lá ruas inteiras de toleradas, ruas de
loiras perfumadas de falas tão lânguidas como fúcsias, de morenas de beijos tão
doces como medronhos, de ruivas de cabelos tão fulvos como o poente. São as
filhas dos operários que espancam as mulheres quando chega à noite a casa,
perdidos de bêbados; são as filhas dum ventre que não tinha nome e cujo pai é
toda a gente; são aquelas que tendo vendido tudo se vendem afinal; são a legião
enorme e interminável das nascidas não se sabe como, paridas não se sabe aonde,
as filhas das ervas, filhas da rua.
Nos bancos
sombrios do square há
vultos enigmáticos, suspeitos, órfãos cujas almas são os íman da desgraça de
todo o mundo, e à esquina das ruas pedem esmola velhos patriarcas como
castanheiros centenários, filhas que fugiram aos pais pelos amantes que as
abandonaram, pais que os filhos expulsaram de casa, mulheres que outrora foram
belas e faladas. Embuçada num portal uma criaturinha esguia e franzina como uma
santa, silenciosa, estende a quem passa a mão afilada e transparente e todos se
afastam com o rancor, enquanto ela lá continua, no olhar a nostalgia das que
passam os dias a tossir. Há carnes nuas que o frio corta e a nortada arroxeia a
par de equipagens arrogantes mais brunidas que a água cristalina; vestes
roçagantes e sumptuosas, arminhos e púrpuras, crachás e andrajos. Passeiam na
mesma rua a majestade e o andrógino, a bêbada e a duquesa, e encontram-se
muitas vezes no mesmo olhar os olhos que são alvoradas e os que são crateras
sempre em perpétuas erupções de lágrimas. E na sombra, há criaturas emagrecidas
pelas privações, recantos sinistros de infâmia onde a luz debuxa, às vezes, a
traços esguios e esqueléticos, uma caricatura que em lugar de fazer rir faz
arrepiar; há gestos de revolta, meio esboçados, repelentes, grotesco, divinos;
punhos erguidos, caras crispadas, criaturas capazes de agatanhar os pais e lhes
arrancar os olhos para castigo de as ter feito vir ao mundo.
E pensa a
gente se foi só para todo este lodo, toda esta amargura, que sofreram todas as
mulheres as dores do parto. Bizarramente, ao longe, silenciosa e erma como um
túmulo, esgarça-se a brancura duma casita abandonada, e mais distante, na
solidão duma encosta verde, umas árvores, com o seu reumatismo eterno,
descarnadas, com seus troncos como aranhas monstruosas são tristes como a noite
e como a desolação. O sol agoniza e a sombra que desce lentamente amortalha a
terra com os seu manto funerário. Depois surge no céu a lua, muito grande,
branca como a face duma defunta ou ensanguentada como a cabeça dos
guilhotinados. Então por toda a terra se eleva o choro das ribeiras soluçantes,
o ciclo longo das folhas que se abraçam, enquanto distante um ou outro galo
perdido solta o seu grito de alarme como o das sentinelas à volta das prisões. E
eu, debruçado sobre a cidade, escuto o seu respirar e sinto elevar-se da treva
densa que abraça o mundo, num surdo formilhar, o arfar de mil opressos peitos
que mal respiram e que semelham o ralo estertoroso de mil agonizantes». In
Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, Editora Guerra e Paz, 2011, ISBN
978-989-702-000-1.
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