segunda-feira, 13 de abril de 2020

Como eu Atravessei África. Alexandre Serpa Pinto. «… que já tinha pensado num distinto Oficial da nossa Marinha de Guerra, Hermenigildo Capelo, para fazer parte da expedição. No dia seguinte parti para o Norte…»

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Como eu atravessei a África do Atlântico ao Mar Índico.
Viagem de Benguela à Contra-Costa, através de Regiões Desconhecidas
«(…) Sua Excelência recebeu-me com secura, dizendo-me, que podia dispor de pouco tempo, e perguntando-me, o que eu queria? Travou-se entre nós o seguinte diálogo: ouvi dizer, que V. Exa. pensa em enviar à África uma expedição geográfica; e sobre isto venho falar. O Ministro mudou logo de tom para comigo, e mandou-me sentar com toda afabilidade. Já esteve em África?, perguntou-me ele. Já estive em África, conheço um pouco o modo de viajar ali, e tenho-me ocupado muito em estudar questões Africanas. Quer ir fazer uma longa viagem na África Austral? Declaro que hesitei um momento em responder. Estou pronto a ir, disse por fim. Bem; me disse ele, penso em enviar uma grande expedição à África, bem provida de recursos; e quando tratar de organizar o pessoal, não esquecerei o seu nome. É verdade; me disse, quando eu já ia a sair, que condições e que vantagens pede por esse serviço? Nenhumas, lhe respondi eu, e saí. Fui do Ministério dos Negócios Estrangeiros à Calçada da Glória, Nº 3, e procurei o dr. Bernardino António Gomes, vice-presidente da Comissão Central Permanente de Geografia. Tivemos larga conferência, e o distinto sábio, então todo entregue a questões geográficas, disse-me, que já tinha pensado num distinto Oficial da nossa Marinha de Guerra, Hermenigildo Capelo, para fazer parte da expedição.
No dia seguinte parti para o Norte. A viagem e os ares do campo fizeram arrefecer um pouco o febril entusiasmo que se apossara de mim em Lisboa, e pensando maduramente, resolvi não ir explorar em África. Minha mulher e a minha filha eram laços difíceis de romper, e cada vez que a ideia de me privar das carícias da meiga criança me passava pela mente, arrefecia completamente em mim o ardor das explorações. De um lado, a família, e do outro a África, eram dois poderosos atractivos que me tinham perplexo. Encontrei um meio de resolver a questão. Se eu fosse nomeado Governador de um distrito, podia ir estudar uma parte de África, sem me separar da família. Fui colocado no 4 de Caçadores, e na minha viagem para o Algarve, passei alguns dias em Lisboa. Não se falava mais em expedição exploratória, e apenas um entusiasta, Luciano Cordeiro, não tinha descrido de que ela se faria; e na sociedade de geografia, de que era Secretario, tinha levantado um alto brado a favor dela. O dr. Bernardino António Gomes, já de idade provecta, tinha cedido ao peso do seu incessante labutar, e sentia já os primeiros sintomas do mal que, pouco depois, arrancando-lhe a vida, devia arrancar a Portugal e ao mundo uma das maiores ilustrações portuguesas do século XIX. Eu não conhecia a esse tempo o homem ardente e ilustrado a quem hoje me prende verdadeira amizade, Luciano Cordeiro.
Todos aqueles a quem falava de exploração, me diziam ser coisa adiada. Ao passo que o estado em que encontrei as coisas em Lisboa me compungia, pois que via perder-se a luz que um momento brilhara, para dar um impulso harmónico às explorações Portuguesas em África; por outro lado, sentia um certo prazer em ver-me, por esse meio, libertado do meu compromisso; compromisso que me separaria dos entes que me são caros. Nutri então a ideia de ir governar, e de me estabelecer em África, nessa África em que eu queria trabalhar, sem por isso me separar dos meus. Fui falar ao Ministro. Dessa vez fui logo cordialmente recebido. Estranhei o caso, não se falando já de explorações. O que o traz por aqui? Venho pedir a V. Exa. o governo de Quilimane, que está vago. O Sr. Corvo riu-se. Tenho missão de maior monta a confiar-lhe; me disse; preciso de si para coisa diferente de governar um distrito em África; e por isso não lhe dou o governo de Quilimane. Então V. Exa. ainda pensa em fazer explorar a África? Eu com franqueza digo, que hoje não creio que a ideia se realize. Dou-lhe a minha palavra de honra, me disse o Ministro, que ou hei-de deixar de ser João Andrade Corvo, ou na próxima Primavera, uma expedição organizada como ainda se não organizou expedição alguma na Europa, há de partir de Lisboa para a África Austral. E conta comigo? Conto consigo, me disse, e em breve terá notícias minhas. Saí aterrado do Gabinete do Ministro. Cheguei ao Hotel Central, e escrevi o seguinte: não tenho a honra de o conhecer, mas preciso falar-lhe, e peço-lhe uma entrevista. Sobrescritei, a Hermenigildo Carlos Brito Capelo-Oficial de guarnição a bordo do couraçado Vasco de Gama. No dia imediato, recebi a seguinte resposta: estou hoje no Café Martinho, às 3 horas. Capelo. Ás três horas entrava no Café Martinho, e vi que as mesas estavam completamente desertas. Só a uma delas estava sentado um primeiro-tenente de marinha, que eu não conhecia mesmo de vista. Devia ser o meu homem. Bebia pausadamente um grog, e tinha a cabeça descoberta. Era de mediana estatura, tanto quanto eu pude avaliar estando ele sentado. Moreno, de olhar plácido; o cabelo-raro, e grisalho, o pequeno bigode já esbranquiçado, davam-lhe um ar de velhice, que era desmentido pela tez desenrugada, e apresentando o lustre da juventude. É o sr. Capelo? Sou; é o sr. Serpa Pinto? Já o esperava, e sei que, provavelmente, vem falar-me de África. É verdade. Então está decidido a fazer parte da expedição? Estou; e já nisso falei ao dr. Bernardino António Gomes. Foi ele que me falou no sr.; que compromisso tem? Nenhum. Não sei bem o que o Governo quer; falei duas vezes com o dr. Gomes; ainda não vi o Ministro, e apenas lhe posso dizer, que, se for à África, escolherei para companheiro um meu amigo, e camarada na armada, Roberto Ivens. Conhece-o? Não o conheço. Falei ao Ministro e ele disse-me, que contava comigo para a expedição. Nesse caso, uma vez que já tem compromissos com o Ministro, eu desisto de ir». In Alexandre Serpa Pinto, Como eu Atravessei África, 1881, Publicações Europa-América, 1998, ISBN 978-972-104-400-5.

Cortesia de PEuropa-América/JDACT