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Como eu
atravessei a África do Atlântico ao Mar Índico.
Viagem de Benguela à Contra-Costa, através de Regiões Desconhecidas
«(…)
Sua Excelência recebeu-me com secura, dizendo-me, que podia dispor de pouco
tempo, e perguntando-me, o que eu queria? Travou-se entre nós o seguinte diálogo:
ouvi dizer, que V. Exa. pensa em enviar à África uma expedição geográfica; e
sobre isto venho falar. O Ministro mudou logo de tom para comigo, e mandou-me
sentar com toda afabilidade. Já esteve em África?, perguntou-me ele. Já estive
em África, conheço um pouco o modo de viajar ali, e tenho-me ocupado muito em
estudar questões Africanas. Quer ir fazer uma longa viagem na África Austral?
Declaro que hesitei um momento em responder. Estou pronto a ir, disse por fim. Bem;
me disse ele, penso em enviar uma grande expedição à África, bem provida de
recursos; e quando tratar de organizar o pessoal, não esquecerei o seu nome. É
verdade; me disse, quando eu já ia a sair, que condições e que vantagens pede
por esse serviço? Nenhumas, lhe respondi eu, e saí. Fui do Ministério dos
Negócios Estrangeiros à Calçada da Glória, Nº 3, e procurei o dr. Bernardino
António Gomes, vice-presidente da Comissão Central Permanente de Geografia.
Tivemos larga conferência, e o distinto sábio, então todo entregue a questões
geográficas, disse-me, que já tinha pensado num distinto Oficial da nossa
Marinha de Guerra, Hermenigildo Capelo, para fazer parte da expedição.
No dia
seguinte parti para o Norte. A viagem e os ares do campo fizeram arrefecer um
pouco o febril entusiasmo que se apossara de mim em Lisboa, e pensando
maduramente, resolvi não ir explorar em África. Minha mulher e a minha filha
eram laços difíceis de romper, e cada vez que a ideia de me privar das carícias
da meiga criança me passava pela mente, arrefecia completamente em mim o ardor
das explorações. De um lado, a família, e do outro a África, eram dois
poderosos atractivos que me tinham perplexo. Encontrei um meio de resolver a
questão. Se eu fosse nomeado Governador de um distrito, podia ir estudar uma
parte de África, sem me separar da família. Fui colocado no 4 de Caçadores, e
na minha viagem para o Algarve, passei alguns dias em Lisboa. Não se falava
mais em expedição exploratória, e apenas um entusiasta, Luciano Cordeiro, não
tinha descrido de que ela se faria; e na sociedade de geografia, de que era
Secretario, tinha levantado um alto brado a favor dela. O dr. Bernardino
António Gomes, já de idade provecta, tinha cedido ao peso do seu incessante
labutar, e sentia já os primeiros sintomas do mal que, pouco depois,
arrancando-lhe a vida, devia arrancar a Portugal e ao mundo uma das maiores ilustrações
portuguesas do século XIX. Eu não conhecia a esse tempo o homem ardente e
ilustrado a quem hoje me prende verdadeira amizade, Luciano Cordeiro.
Todos
aqueles a quem falava de exploração, me diziam ser coisa adiada. Ao passo que o
estado em que encontrei as coisas em Lisboa me compungia, pois que via
perder-se a luz que um momento brilhara, para dar um impulso harmónico às
explorações Portuguesas em África; por outro lado, sentia um certo prazer em
ver-me, por esse meio, libertado do meu compromisso; compromisso que me
separaria dos entes que me são caros. Nutri então a ideia de ir governar, e de
me estabelecer em África, nessa África em que eu queria trabalhar, sem por isso
me separar dos meus. Fui falar ao Ministro. Dessa vez fui logo cordialmente
recebido. Estranhei o caso, não se falando já de explorações. O que o traz por
aqui? Venho pedir a V. Exa. o governo de Quilimane, que está vago. O Sr. Corvo
riu-se. Tenho missão de maior monta a confiar-lhe; me disse; preciso de si para
coisa diferente de governar um distrito em África; e por isso não lhe dou o
governo de Quilimane. Então V. Exa. ainda pensa em fazer explorar a África? Eu
com franqueza digo, que hoje não creio que a ideia se realize. Dou-lhe a minha
palavra de honra, me disse o Ministro, que ou hei-de deixar de ser João Andrade
Corvo, ou na próxima Primavera, uma expedição organizada como ainda se não
organizou expedição alguma na Europa, há de partir de Lisboa para a África
Austral. E conta comigo? Conto consigo, me disse, e em breve terá notícias
minhas. Saí aterrado do Gabinete do Ministro. Cheguei ao Hotel Central, e
escrevi o seguinte: não tenho a honra de o conhecer, mas preciso falar-lhe, e
peço-lhe uma entrevista. Sobrescritei, a Hermenigildo Carlos Brito
Capelo-Oficial de guarnição a bordo do couraçado Vasco de Gama. No dia
imediato, recebi a seguinte resposta: estou hoje no Café Martinho, às 3 horas.
Capelo. Ás três horas entrava no Café Martinho, e vi que as mesas estavam
completamente desertas. Só a uma delas estava sentado um primeiro-tenente de
marinha, que eu não conhecia mesmo de vista. Devia ser o meu homem. Bebia
pausadamente um grog, e tinha a cabeça descoberta. Era de mediana estatura,
tanto quanto eu pude avaliar estando ele sentado. Moreno, de olhar plácido; o
cabelo-raro, e grisalho, o pequeno bigode já esbranquiçado, davam-lhe um ar de
velhice, que era desmentido pela tez desenrugada, e apresentando o lustre da
juventude. É o sr. Capelo? Sou; é o sr. Serpa Pinto? Já o esperava, e sei que,
provavelmente, vem falar-me de África. É verdade. Então está decidido a fazer
parte da expedição? Estou; e já nisso falei ao dr. Bernardino António Gomes. Foi
ele que me falou no sr.; que compromisso tem? Nenhum. Não sei bem o que o
Governo quer; falei duas vezes com o dr. Gomes; ainda não vi o Ministro, e
apenas lhe posso dizer, que, se for à África, escolherei para companheiro um
meu amigo, e camarada na armada, Roberto Ivens. Conhece-o? Não o conheço. Falei
ao Ministro e ele disse-me, que contava comigo para a expedição. Nesse caso,
uma vez que já tem compromissos com o Ministro, eu desisto de ir». In Alexandre
Serpa Pinto, Como eu Atravessei África, 1881, Publicações Europa-América, 1998,
ISBN 978-972-104-400-5.
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