Cortesia
de wikipedia e jdact
«Se a vida fosse perfeita, ou
melhor, se a vida fosse justa, provavelmente não lhe bastaria uma, teria
precisado de duas, pensou Filipe. Tinha o mundo a seus pés, literalmente.
Sentado em uma mesa do bar, no último piso do hotel, quarenta andares acima da
rua, voltou a cabeça para a direita e descobriu o seu rosto, a centímetros, na
janela panorâmica. Viu uma expressão melancólica reflectida no vidro. Era uma
noite de Dezembro em Nova York e, apesar do ambiente obscuro do bar, as lâmpadas
fracas que pontuavam por cima do balcão circular à sua esquerda, bem como a luz
mortiça que atravessava o abajur lacado em azul de metileno, eram suficientes
para o impedir de ver claramente os riscos luminosos das ruas traçadas à régua,
cruzando-se e formando quadrados até ao fim de Manhattan, até ao buraco onde
antes despontava o World Trade Center e agora havia o Memorial Site, até ao rio
Hudson. Não vislumbrou a cidade, viu-se a si próprio. Sorriu, um reflexo da
alma. A graduação dos óculos leves, discretos, aumentara acentuadamente ao cair
dos quarenta, antes disso, quase não os punha, e o cabelo, já ralo, usava bem
curto. Em contrapartida, tinha a mesma cara de sempre, sem rugas, e nem se
podia dizer que estava envelhecendo, pois, de aspecto, não estava ficando mais
velho. Vinte anos antes chegara a deixar crescer a barba, angustiado por ninguém
o levar a sério. Agora não tinha barba, e não havia maneira de convencer uma única
pessoa dos seus quarenta e nove anos a poucos minutos dos cinquenta.
Uma gargalhada abafada pelas paredes
acolchoadas do bar e pela carpete espessa azul-escuro chamou-lhe momentaneamente
a atenção para quatro executivos com copos nas mãos, sentados três mesas à
frente, fazendo um brinde. Festejavam um negócio fechado, certamente. Um garçom
hispânico, aprumado na cerimónia com um colete de riscas, preto e grená,
aproximou-se da sua mesa com uma garrafa de scotch e um pequeno balde de gelo numa bandeja
prateada. One more, Mister Passos? Why
not? ele concordou, pensando por que não, se vou de elevador
para o quarto? O garçom, jovem, serviu uma dose dupla pelo preço de uma,
cortesia de uma discreta e respeitosa cumplicidade com o cliente. Há três dias
que ele acabava a noite sentado ali, naquela mesma mesa, com o laptop aberto, embrenhado
nos últimos capítulos de uma história que estava escrevendo. Un poco de hielo, por favor. Como no. Dos
piedras, verdad? Si, gracias, Esteban.
O garçom se afastou, Filipe deu
um gole na bebida, colocou o copo na mesa, tirou um cigarro do maço, acendeu-o,
recostou-se na cadeira, concentrado na tela do computador, encheu os pulmões de
fumo, sentiu o consolo do cigarro sem lhe pesar na consciência. Soltou uma
baforada de fumo enquanto ainda olhava para o computador, suspirou de satisfação,
chegou-se à frente, carregou na tecla do ponto final da derradeira frase. Pensou
em Isabel. Um dia, já lá iam oito anos, o tempo corria, o tempo curava,
dizia-se, apaziguava a angústia dos momentos dolorosos, mas, sabia-o pela sua
própria fatalidade, não corrigia os erros de uma vida, um dia ela pedira que
lhe escrevesse uma história. Lembrava-se exactamente de onde estava, na rua,
encostado num carro estacionado junto ao passeio, de telrfone móvel na mão.
Fazia sol, era Verão. Filipe desvalorizou o pedido, disse uma piada qualquer,
ela não gostou, o momento passou. Ele entendeu o pedido como um capricho dela,
não lhe deu importância, mas, evidentemente, ela não lhe pedia uma história,
mas uma demonstração de amor. Percebeu isso muito depois, quando caiu em si à
uma da tarde de um dia solitário, no escritório de apenas uma sala, arrendada
ao mês, onde as horas fluíam, escrevendo os livros que, num futuro não muito longínquo,
acabariam sendo vendidos pelo mundo afora. Era apenas um tapete gasto, uma
escrivaninha de madeira barata, o computador, uma cadeira confortável e pilhas
de livros crescendo pelas paredes, pois nunca se incomodara em comprar uma estante.
As salas contíguas eram alugadas para jovens universitários, que davam aulas a
estudantes mais novos em sessões contínuas pagas por hora ao final da tarde. Até
lá, o andar inteiro ficava mergulhado num silêncio conventual, e à sala de Filipe,
no primeiro piso, chegava o rumor pacato da rua: o andar depressa dos saltos
nas calçadas, as conversas indistintas, o movimento incessante dos automóveis.
Filipe ainda se lembrava de
Isabel todos os dias à uma da tarde, não por um qualquer delírio de escritor
sonhador, mas por ser a hora de chegar ao escritório e telefonar para ela. Já não
o fazia, mas ainda sentia o sobressalto das treze em ponto, como um lembrete
incorrigível do espírito. Sentia uma súbita alegria, e logo a consciência do
vazio, como um soco no estômago. O escritório tinha uma pequena varanda; a
fachada era feita de ripas de madeira, lembrando os trópicos naqueles dias
abafados de Outubro em que vinha uma bátega súbita e, sem mais, afogava as viúvas
idosas nas suas próprias cozinhas, nos bairros de casas típicas escalavradas
pelas intempéries mais arrasadoras. Naquele dia escaldante e húmido, trajado de
nuvens baixas e carregadas, Filipe foi assaltado como sempre à uma da tarde pela
urgência de telefonar para Isabel. Nesse momento, uma trovoada estourou como se
fosse na sala, e um dilúvio de quinze minutos passou por ali. Filipe,
atordoado, levantou-se da cadeira e foi à janela espantar-se com o espectáculo
das águas. Lá em baixo, no aperto da Rua de São José, onde os carros e os peões
se cruzavam por milagre, uns descendo para a Baixa, outros subindo para o Marquês
de Pombal, um rio espontâneo tomou conta da via, e uma correnteza capaz de
arrastar uma vida trepou pelos passeios exíguos. Espreitou pelas portadas
entreabertas, viu umas pernas de mulher debaixo de um guarda-chuva vermelho
lutando com o temporal. Acendeu um cigarro, momentaneamente distraído,
fantasiando uma história para aquela imagem que lhe espicaçava a imaginação.
Depois, como num piscar de olhos, a imagem desvaneceu-se e voltou a pensar em
Isabel. Devia ter-lhe escrito uma história,
censurou-se, devia ter feito tantas
coisas… Ocorreu-lhe uma ironia: era um famoso escritor de histórias
de amor e não conseguira salvar o seu romance com a mulher da sua vida. A chuva
começou a se alastrar pelo tapete e a salpicar-lhe os sapatos, mas Filipe,
imerso numa perplexidade, não reparou na poça a seus pés». In Tiago Rebelo, Uma Noite em
Nova York, 2011, Edições ASA, ISBN 978-989-231-376-4.
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