quinta-feira, 2 de abril de 2020

Poesia. Vários Autores. Arte. Fernando Pessoa e Artur Azevedo. «E disse no fim de tremer três vezes: aqui ao leme sou mais do que eu: sou um povo que quer o mar que é teu; e mais que o mostrengo, que me a alma teme»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Mostrengo
«O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,

E disse: quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?
E o homem do leme disse, tremendo:

El-Rei D. João Segundo!
De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso.
Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?

E o homem do leme tremeu, e disse:
El-Rei D. João Segundo!
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:
Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
Poema de Fernando Pessoa, In João Villaret

Por decoro
«Quando me esperas, palpitando amores,
e os lábios grossos e húmidos me estendes,
e do teu corpo cálido desprendes
desconhecido olor de estranhas flores;

quando, toda suspiros e fervores,
nesta prisão de músculos te prendes,
e aos meus beijos de sátiro te rendes,
furtando as rosas as purpúreas cores;

os olhos teus, inexpressivamente,
entrefechados, lânguidos, tranquilos,
olham meu doce amor, de tal maneira,

que, se olhassem assim, publicamente,
deveria, perdoa-me, cobri-los
uma discreta folha de parreira».
Soneto de Artur Azevedo (1855–1908)

O Poeta é um Fingidor
«O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração».
Poema de Fernando Pessoa, In A Nossa Rádio

Cortesia de ANossaRádio/JDACT