Finjo
«Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda,
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!»
Ò Tocadora de Harpa
«Ó tocadora de harpa, se eu
beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!
E, beijando-o, descesse pelos
desvãos
Do sonho, até que enfim eu o
encontrasse.
Tornado Puro Gesto, gesto-face
De medalha sinistra, reis cristãos
Ajoelhando, inimigos e irmãos,
Quando processional o andor
passasse…
Teu gesto que arrepanha e se
extasia…
O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os
juncais…
Caverna em estalactites o teu gesto…
Não poder eu prendê-lo, fazer mais
Que vê-lo e que perdê-lo!... E o
sonho é o resto…»
Poema de Fernando Pessoa,
In A Nossa Rádio