sexta-feira, 24 de abril de 2020

A Biblioteca Perdida. A. M. Dean. «Um flash chamou a sua atenção no momento em que um jovem perito da equipe de Homicídios tirou uma foto do livro, juntamente com a mão de Al. Al imaginou a cena»

Cortesia de wikipedia e jdact

9H30
«(…) Dois pequenos orifícios perfuravam o couro da velha poltrona, marca dos tiros fatais que tinham tirado a vida de Arno Holmstrand. Os tiros foram dados bem no meio do tronco, com pouco mais de dois centímetros de distância entre si. Sinais que denunciavam o trabalho de um profissional. Agora, com o corpo removido, o detective podia retraçar a trajectória das balas a partir dos dois buracos deixados no estofamento da poltrona. O assassino tinha parado na entrada do gabinete; ele não tinha mais que 1,70m de altura. A vítima estava sentada, de cara para seu algoz. O detective Al Johnson observava os técnicos que vasculhavam a cena do crime. Uma fina pinça, manuseada com habilidade pelas mãos enluvadas de um homem que obviamente já tinha feito aquilo antes, extraíram uma bala de um dos orifícios da poltrona. Talvez um 38, Al considerou, embora não estivesse em hipótese alguma preparado para insistir no palpite. Esse era o terreno dos técnicos em balística. Para ele, bastava saber que se tratava de um revólver, que aquilo era sem dúvida um assassinato, e que claramente fora perpetrado por um profissional. Coisas que ele já vira antes. O corpo fora levado para o necrotério mais cedo naquele mesmo dia. Três ferimentos à bala no total. O do lado direito viera primeiro, provavelmente quando a vítima ainda estava fora do gabinete.
Johnson perscrutou o rastro de sangue que se estendia até o interior da sala. O médico legista suspeitava que o primeiro ferimento já teria sido fatal, mas a vítima tinha sobrevivido tempo suficiente para passar pela porta aos tropeços, o detective ergueu-se do chão tentando reconstituir os passos hipotéticos, passar pela porta aos tropeços e chegar até a mesa. Para quê? Havia um telefone sobre a mesa, mas nenhum sinal de que fora usado, e o 911 não recebera chamada alguma até à manhã seguinte, quando um zelador chegou à cena do crime. Outro perito pulverizava o batente da porta em busca de impressões digitais. Um terceiro fazia o mesmo na mesa. Dois sujeitos uniformizados tiravam fotos, o parceiro de Johnson entrevistava os funcionários da noite no corredor, e pelo menos seis outras pessoas se movimentavam pela sala. Não foi a primeira vez que Al se surpreendeu diante da vibração de vida que pode haver na cena de um crime. Era um dos paradoxos da função.
Al chegou mais perto da mesa. Ela era como imaginava a mesa de um velho professor: abajur verde, porta-canetas de bronze, mata-borrão desbotado e um computador que parecia já estar ultrapassado desde a época de sua fabricação. Uma bandeja de couro continha cartas velhas, cada uma meticulosamente aberta com uma espátula de marfim, que repousava sobre elas. Espátula de marfim, torre de marfim…, o ambiente era um conjunto de símbolos de um status cultural. No centro da mesa, havia um grande livro de capa dura cheio de fotografias. Estava aberto, mais ou menos na página central. O detective se aproximou e correu levemente a mão enluvada pela superfície das páginas. Por baixo do látex cheio de talco, os seus dedos calejados se detiveram ao tactear bordas inesperadamente ásperas. A encadernação no centro do livro escondia uma irregularidade no papel, no ponto onde algumas páginas haviam sido evidentemente arrancadas pouco tempo antes.
Um flash chamou a sua atenção no momento em que um jovem perito da equipe de Homicídios tirou uma foto do livro, juntamente com a mão de Al. Al imaginou a cena. Um homem, atingido por um tiro no peito, caminha com dificuldade de volta à sua sala para arrancar algumas páginas de um livro. Aquilo fazia pouco sentido. Mas também, assassinatos quase nunca faziam muito sentido. Outra foto, a câmera agora focou os pés dele. Al olhou para baixo na direcção de uma lixeira, cheia de restos de papel queimado. De joelhos, um jovem pretensioso, vestindo um casaco feito sob medida, examinava os restos chamuscados. Belo casaco, pensou Al, imediatamente irritado. Um rapaz das agendas do governo, era só o que faltava. Não era fã dos grandes filmes comerciais de Holly wood, mas achava que eles representavam muito bem a perturbação causada quando várias agências de segurança disputavam um caso. E os detectives das equipes locais nunca vestiam casacos elegantes. Não sabia de onde o rapaz era, mas independentemente disso, Al já sentia que a situação seria terrivelmente frustrante. É costume dos professores de História queimar o seu lixo?, perguntou o rapaz, sem olhar para cima. Agora fiquei surpreso, rapaz.
O rapaz de casaco retraiu-se visivelmente quando proferida esta última palavra, evidentemente insatisfeito por ter sido lembrado de sua pouca idade. Levantou-se bem devagar, forçando-se a recuperar a tranquilidade. Não é muita coisa. Só algumas páginas amassadas, queimadas todas juntas, eu acho. Al apontou o livro sobre a mesa. Algumas páginas foram arrancadas dali, disse, indicando as bordas rasgadas do volume. Ao que parece pelos números antes e depois, três páginas estão faltando». In A. M. Dean, A Biblioteca Perdida, 2012, Editora Prumo, 2012, ISBN 978-857-927-298-1.

Cortesia de EPrumo/JDACT