jdact
«(…) A tenda era contígua a
outra, maior, que servia de refeitório. Tinha apenas uma cama, onde se achavam espalhados
alguns dos seus pertences, e uma mesa desdobrável. Havia ainda várias peças de roupa,
livros e utensílios diversos dispersos pela tenda, que já devia ter sido
revistada pela polícia. Jane avançou com passos hesitantes. Quanto a mim,
reparei na reprodução de um fragmento aramaico, em cima da mesa desdobrável. Deve
ser este fragmento que o professor Ericson encontrou, murmurou Jane. De que se
trata? De um fragmento do Qumran. De facto, fala-se de Melquisedec: ... no fim
do mundo, quando da libertação dos filhos da luz, ele será o patrono dos justos
e o soberano dos derradeiros tempos. Melquisedec é tido como o príncipe da luz,
o Grande Padre que oficia nos tempos derradeiros, quando se fizer a expiação
por Deus. Mas por que motivo Ericson se interessou tanto por esse personagem,
em particular? Isso, já não sei... Perto da mesa, um outro objecto despertou a
minha atenção. Era um gládio antigo, de metal prateado, cujo punho preto
terminava com uma espécie de rosto... Ao examiná-lo mais de perto, apercebi-me de
que era uma caveira e, na extremidade do cabo, havia uma cruz de pontas largas.
E isto?, perguntei. É um gládio de cerimônia, explicou Jane. Ericson era franco-maçon.
A sério? Não são só os essénios que perpetuam a tradição das ordens gnósticas e
das religiões misteriosas. Então, é possível que Ericson quisesse recuperar o
tesouro do Templo apenas para se tornar rico? Não o creio, não era um homem que
se regesse por esse tipo de ambição. Toma, acrescentou, entregando-me uma
fotografia. Guarda-a, é para ti.
Depois, baixando a cabeça, saiu
da tenda, com passos apressados. De volta à minha gruta, após a longa
caminhada, primeiro, sob o sol poente, depois, sob as primeiras sombras do
deserto, estudei a fotografia do professor Ericson. Os seus cabelos grisalhos,
os seus olhos escuros, a sua pele imberbe, bronzeada pelo sol, conferiam-lhe uma
certa distinção. Aproximando a minha lupa da fotografia, pude discernir a letra
Z, kaph, a palma da mão, que representa a realização de um esforço efectuado no
intuito de domar as forças da natureza. O arqueamento do kaph é sinal de
humildade, de aceitação das vicissitudes e de coragem, e o resultado a consequência
de esforços mentais e físicos consideráveis. De repente, um pormenor despertou
a minha atenção. Ao lado do professor Ericson achava-se Josef Koskka e os dois
pareciam formar uma equipa naquela caça ao tesouro a que haviam dedicado as
suas vidas, fazendo escavações em condições adversas. As mãos de ambos estavam
calejadas, trabalhavam à torreira do sol com pás e picaretas. O professor, com
o tronco ligeiramente inclinado para a frente, tinha um cachimbo numa mão e, na
outra, um rolo que se assemelhava ao de cobre, mas era de cor prateada e não
apresentava caracteres hebraicos, mas sim góticos, entre os quais, servindo-me
mais uma vez da lupa, distingui uma palavra: Adhemar. Mas que podia
significar? Dirigi-me à piscina, onde tomávamos os nossos banhos rituais, para me
purificar, pois estivera em contacto com a morte, tanto no cemitério como no
local do crime. Na ampla divisão, de tecto abobadado, o tanque, cavado na
rocha, tinha profundidade suficiente para que pudéssemos imergir o corpo por
completo, como a lei exige.
Despi-me, tirei os óculos, a
túnica de linho branco, e desci os degraus que levavam às águas límpidas. Desde
que me juntara aos essénios, não parava de emagrecer. Comia pouco e os meus músculos
sobressaíam, por baixo da pele, como os troncos de uma árvore, no Inverno.
Mergulhei, por três vezes, seguindo o ritual. Observei o reflexo do meu rosto
nas águas cristalinas, o único espelho que me permitia ver a minha imagem,
mesmo que difusa. A barba curta e os cabelos escuros e encaracolados
emolduravam-me o rosto de pele clara, quase translúcida, e olhos azuis e lábios
finos. Na minha testa, estava gravada a letra P, koph, com a qual se forma a
palavra kadosh, santo. A sua barra, que cai na vertical, indica que se pode
descer em direcção a imoralidade ao procurar a santidade. Saí da piscina,
sequei-me, vesti a túnica e dirigi-me ao scriptorium, pois queria continuar o
trabalho que começara.
Na grande mesa de madeira,
espalhavam-se fragmentos de couro escurecido e outros escritos. Aquela divisão
prolongava-se, por uma passagem estreita, até a uma cavidade, onde havia
trapos, retalhos de couro e jarras, tão altas que tocavam o teto da gruta. A
fim de acalmar o espírito, sentei-me em frente da mesa de trabalho. Depois, com
a ajuda do canivete, comecei a raspar o couro do pergaminho, que resistia, tão
áspero era, apesar de o pergaminho, em si, já haver sido cuidadosamente limpo e
alisado. Tracei uma linha horizontal, tendo o cuidado de deixar margens, no alto,
na parte inferior e nos espaços entre cada página. Só depois comecei a
escrever, suspendendo cada letra por baixo das marcas, para obter uma escrita
regular. A superfície do pergaminho deve ser uniforme e perfeitamente homogénea.
Quando escrevo, gosto de sentir o couro amolecer-se ao contacto da palma da
minha mão, das tintas e das cores. O pergaminho representa a pele, a vida que perdura,
mau grado o fogo e a putrefacção. É por isso que conserva a escrita durante
tanto tempo, ao passo que o couro se oxida». In Eliette Abecassis, O Tesouro
do Templo, 2001, Círculo de Leitores, ISBN 972-423-086-4, Editora Livros do
Brasil, colecção Suores Frios, 2003, ISBN 978-972-382-671-5.
Cortesia de
CLeitores/ELBrasil/JDACT