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Sobre
a Tua Grande Face (1986)
«(…)
«Honra-me com teus nadas.
Traduz me passo
De maneira que eu nunca me
perceba.
Confunde estas linhas que te
escrevo
Como se um brejeiro escoliasta
Resolvesse
Brincar a morte de seu próprio
texto.
Dá-me pobreza e fealdade e medo.
E desterro de todas as respostas
Que dariam luz
Ao meu eterno entendimento cego.
Dá-me tristes joelhos.
Para que eu possa fincá-los num
mínimo de terra
E ali permanecer o teu mais
esquecido prisioneiro.
Dá-me mudez. E andar desordenado.
Nenhum cão.
Tu sabes que amo os animais
Por isso me sentiria aliviado. E
de ti, Sem Nome
Não desejo alívio. Apenas
estreitez e fardo.
Talvez assim te encantes de tão
farta nudez.
Talvez assim me ames: desnudo até
ao osso
Igual
a um morto.
O que me vem, devo dizer-te Desejado,
Sem recuo, pejo ou timidezes.
Porque é mais certo mostrar
Insolência no verso, do que
mentir decerto. Então direi
O
que se coleia a mim, na intimidade, e atravessa os vaus
Da fantasia. Deito-me pensada de
bromélias vivas
E me recrio corpórea e
incandescente.
Tu sabes como nasceu a ideia das
pontiagudas catedrais?
De um louco incendiando um
pinheiro de espinhos.
Arquitecta de mim, me construo à
imagem das tuas casas
E te adentras em carne e moradia.
Queixumosa vou indo
E queixoso te mostras, depois de
te fartares
Do meu jogo de engodos. E a cada
noite voltas
Numa
simulação de dor. Paraíso do gozo.
De tanto te pensar, Sem Nome, me
veio a Ilusão.
A
mesma ilusão
Da égua que sorve a água pensando
sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro
cavalo de cem luas.
De te sonhar, Sem Nome, tenho
nada
Mas acredito em mim o ouro e o
mundo.
De te amar, possuída de ossos e
de abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cimos. De nunca
te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter
boca
Quando só tenho patas e focinho.
Do
muito desejar altura e eternidade
Me vem a fantasia de que Existo e
Sou.
Quando sou nada: égua
fantasmagórica
Sorvendo
a lua n’água.
Vem apenas de mim, ó Cara Escura
Este
desejo de te tocar o espírito
[…]
Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa
Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.
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