Cortesia
de wikipedia e jdact
«Há
alguns anos, no campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha, Luis Sepúlveda
encontrou gravada numa pedra uma frase de autor anónimo que dizia: eu estive
aqui e ninguém contará a minha história. Essa frase trouxe-lhe à memória toda
uma galeria de personagens excepcionais que havia conhecido e cuja histórias
mereciam ser contadas. Assim nasceu o presente livro, As Rosas de Atacama. Histórias
Marginais (aliás o título da edição original), e também histórias de marginais;
os relatos, quase sempre curtos, que compõem esta obra têm os ingredientes a
que Luis Sepúlveda recorre desde O Velho Que Lia Romances de Amor: a defesa da
vida e da dignidade humana, a luta pela justiça, o elogio dos valores ecológicos,
o exotismo como afirmação de que os sonhos são os mesmos em todos os lugares da
Terra. Em Sepúlveda a realidade supera sempre a ficção. Daí que este extraordinário
contador de histórias continue a servir-se da sua condição de andarilho das
cinco partidas do mundo para nos oferecer, em lampejos de génio, o relato
insuperável dos homens e das mulheres que, no anonimato ajudaram, ajudam e
ajudarão a construir o verdadeiro rosto da história». In Sinopse.
Histórias
Marginais
«Visitei
há alguns anos o campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha. Percorri
no meio do silêncio atroz as valas comuns onde jazem milhares de vítimas do
horror, perguntando a mim mesmo em qual delas estariam os restos de uma certa
menina que nos legou o mais comovedor testemunho acerca da barbárie nazista e a
certeza de que a palavra escrita é o maior e o mais invulnerável dos refúgios,
porque as suas pedras são ligadas pela argamassa da memória. Caminhei,
procurei, mas não encontrei qualquer indício que me levasse à sepultura de Anne
Frank. À morte física, os verdugos juntaram uma segunda morte, a do
esquecimento e do anonimato. Um morto é um escândalo, mil mortos são uma estatística,
afirmou Goebbels, e o mesmo repetiram e repetem os militares chilenos ou
argentinos e os seus cúmplices disfarçados de democratas. O mesmo repetiram e
repetem os Milosevic, Mladic e os seus cúmplices disfarçados de negociadores de
paz. O mesmo no-lo cospem os autores de massacres na Argélia, tão perto da
Europa.
Bergen Belsen não é certamente um
lugar para passear, porque o peso da infâmia oprime, e à angústia do e que
posso eu fazer para que isto não volte a repetir-se?, segue-se o desejo de
conhecer e contar a história de cada uma das vítimas, de nos agarrarmos à palavra
como único esconjuro contra o esquecimento, de contar, de nomear os factos
gloriosos ou insignificantes dos nossos pais, amores, filhos, vizinhos, amigos,
de fazer da vida um método de resistência contra o olvido, porque, como notou
Guimarães Rosa, narrar é resistir. Numa extremidade do campo e muito próximo do
lugar onde se erguiam os infames fornos crematórios, na superfície áspera de
uma pedra, alguém (quem?) gravou, talvez com o auxílio de uma faca ou de um
prego, o mais dramático dos apelos: eu estive aqui e ninguém contará a minha
história. Vi a obra de muitos pintores e, desculpem, desconheço até agora o
estremeção emocional que, para além de O Grito de Munch, uma pintura pode
causar. Estive também diante de inúmeras esculturas e só nas de Agustín
Ibarrola encontrei a paixão e a ternura expressas numa linguagem que as
palavras nunca atingirão. Suponho que terei lido uns mil livros, mas nunca um
texto me pareceu tão duro, tão enigmático, tão belo e ao mesmo tempo tão
dilacerante como aquele, escrito sobre uma pedra. Eu estive aqui e ninguém
contará a minha história, escreveu alguém (quando?, uma mulher?, um homem?),
pensando na sua saga pessoal única e irrepetível, ou talvez em nome de todos
aqueles que não aparecem nos noticiários, que não têm biografias, mas apenas
uma esquecediça passagem pelas ruas da vida». In Luis Sepúlveda, As Rosas de
Atacama, 2000, Porto Editora, 2020,
ISBN 978-972-0-04091-6.
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