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O Anjo da Neve
«(…) Bem que o pai lhe dizia
aprende a olhar para onde vais. Se ela se recordasse que na neve fresca o peso
não deve ser posto à frente e se, eventualmente, Eric, alguns dias antes, lhe
tivesse regulado melhor aquelas juntaras e se o pai tivesse insistido um pouco
mais em dizer mas a Alice pesa vinte e oito quilos, não estarão demasiado
apertadas assim? O salto não foi assim tão alto. Alguns metros, o tempo
suficiente para sentir um pouco de vazio no estômago e nada debaixo dos pés.
Logo de seguida Alice já estava de cabeça no chão, de esquis espetados na
vertical, que tinham levado a melhor sobre o perónio. Não sentiu muitas dores.
Não sentiu quase nada, a dizer a verdade. Apenas a neve que se lhe enfiara por
baixo do cachecol e dentro do capacete e que queimava em contacto com a pele.
Os braços foram a primeira coisa
que mexeu. Quando era mais pequena e acordava quando tinha nevado, o pai
embrulhava-a em roupa e depois levava-a para baixo. Caminhavam até ao meio do
pátio, depois, de mãos dadas, contavam um, dois e três e deixavam-se cair para
trás, como um peso morto. O pai dizia-lhe, agora faz o anjo, e Alice mexia os
braços para cima e para baixo e, quando se levantava e olhava para o seu perfil
gravado no manto branco, parecia mesmo a sombra de um anjo de asas abertas. Alice
fez o anjo na neve, assim, sem motivo especial, apenas para demonstrar a si própria
que ainda estava viva. Conseguiu virar a cabeça para um lado e recomeçar a
respirar, ainda que lhe parecesse que o ar que inalava não chegava precisamente
lá onde deveria chegar. Tinha a estranha sensação de não saber como é que as
suas pernas se tinham virado. A estranhíssima sensação de já não as ter. Tentou
levantar-se, mas não conseguiu.
Sem aquele nevoeiro talvez alguém
a conseguisse ver lá do alto. Uma mancha verde estendida no fundo de um canal,
a poucos passos de onde na Primavera recomeçaria a correr um pequeno rio e o
primeiro calor faria brotar morangos silvestres, que se esperares o tempo
suficiente ficam doces como rebuçados e num dia és capaz de encher um cesto
deles. Alice gritou por ajuda, mas a sua vozinha débil foi logo engolida pelo nevoeiro.
Tentou levantar-se de novo, pelo menos virar-se, mas não houve nada a fazer. O
pai dissera-lhe que quem morre congelado, instantes antes de esticar o pernil
sente grande calor e tem vontade de se despir, de modo que quase todos os que
morrem de frio são encontrados de cuecas. E ela ainda por cima tinha as cuecas
todas sujas.
Começou a perder sensibilidade
também nos dedos. Tirou uma luva, soprou-lhe para dentro e depois voltou a
meter o punho fechado para se aquecer. Fez o mesmo também com a outra mão.
Repetiu aquele gesto ridículo duas ou três vezes. São as extremidades que te
lixam, dizia-lhe sempre o pai. Os dedos dos pés e das mãos, o nariz, as
orelhas. O coração faz de tudo para ter o sangue para si e deixa congelar o
resto. Alice imaginou os seus dedos a tornarem-se azuis e depois, lentamente, também
os braços e as pernas. Pensou no coração que bombeava cada vez com mais força e
procurava reter o calor restante. Ficaria de tal maneira rígida que se passasse
por ali um lobo partia-lhe um braço simplesmente caminhando por cima dela.
Devem andar à minha procura.
Sabe-se lá se existem mesmo lobos
por aqui.
Já não sinto os dedos.
Se não tivesse bebido leite.
Peso à frente, pensou.
Não, os lobos hibernam.
Eric
deve estar furioso.
Não me apetece nada entrar
naquelas competições.
Não digas tolices, sabes muito
bem que os lobos não hibernam.
Os seus pensamentos tornaram-se
progressivamente mais ilógicos e circulares. Lentamente, o sol mergulhou por trás
do monte Chaberton fingindo que não se passava nada. A sombra das montanhas
alongou-se sobre Alice e o nevoeiro tornou-se negro». In Paolo Giordano, A Solidão dos
Números Primos, 2008, tradução de José Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013,
ISBN 978-972-251-834-5.
Cortesia de BertrandE/JDACT