Cortesia
de wikipedia e jdact
«Abro
o olho: Isa, bandeja, torrada, banana, café, leite, manteiga. Fico espreguiçando.
Isa quer que eu coma. Quer que eu me deite cedo. Pensa que sou criança. Depois
que o marido da Isa foi embora ela ficou marcando-me ainda mais. Isa diz que
ele volta, mas eu duvido. Primeiro, ela não era casada com o marido dela.
Segundo, acho que eles não se gostavam muito: Isa de vez em quando fazia
programa, e ele sumia durante dias. Acho que agora sumiu de vez. Isa espera que
o marido volte, a qualquer momento. As camisas dele estão todas passadinhas na
cómoda e ela mandou consertar o binóculo, o homem era doido por jóquei. Ela não
sai mais de casa, nem por um programa barra-limpa, mas até agora, nada. O René
me telefona p’ra fazer um programa de noite. Eu digo que está bem. Tomo nota do
endereço. Na praia estão todos os amigos. Combinam ir pró Zum-Zum. Eu digo que
talvez vá. Se o meu programa acabar cedo eu vou. Mas eu não digo nada do meu
programa p’ra eles. Eles estão por fora. Dois já dormiram comigo, mas só dois.
A gente vai p’ra a boite, dança, bebe e depois eu venho p’ra casa. É
mais camaradagem que outra coisa. A gente brinca, se diverte e pronto.
O apartamento é muito bonito. Nós
somos quatro garotas e eles são também quatro. Não conheço nenhuma das outras meninas,
mas devem ter sido mandadas também pelo René. Como ninguém conhece ninguém,
começa aquela escolha chata, de sempre. Os clientes do René são todos idosos,
muito educados mas danados de lentos para se decidir. Bebemos e conversamos. Três
são cariocas e um deles é paulista. O paulista é o que fala menos. Eu não gosto
muito de paulista, eles são todos ignorantes e brutos e acham que resolvem tudo
com dinheiro. Torço para o paulista não me escolher. Ele me olha e quase enfio
o dedo no nariz para ele ficar com nojo. Mas não enfio, até rio para ele, um
riso de garota tímida que eu sei fazer. Os cariocas estão divertindo o
paulista, sem subserviência, devem ser todos do mesmo nível. Cada qual vai para
um quarto. René sabe que eu não gosto de promiscuidade. Eu vou para o quarto
com o paulista. Sento-me num sofá. Ele também se senta. Depois deita a cabeça
no meu colo, diz que não está com vontade de fazer nada, esses amigos cismaram
que eu hoje tinha que ir com uma garota p’ra cama, mas vamos só conversar, está
OK? Eu digo que está OK. Ele diz que não quer estragar as coisas. Eu digo que
está bem. (Quero ir para o Zum-Zum.) Passo a mão nos cabelos dele. Eu não quero
fazer isso, diz ele, tirando a roupa. Eu também tiro a roupa e nos deitamos,
ele sempre dizendo que não quer, mas me … assim mesmo.
Depois de nos lavarmos,
separadamente, ele se veste, põe dinheiro na minha bolsa. Ele fica muito
calado, com um jeito meio distraído, meio cansado, meio desinteressado como os mais
velhos fazem. Vamos para a sala e os outros todos já estão lá, pois nós
perdemos muito tempo com aquela indecisão dele. Estão todos dançando. Ele me
olha um pouco e diz pode ir embora. Eu pergunto se ele não quer o meu
telefone e ele fica pensando um tempão, me olhando e olhando p’ra sala onde estão
os outros, o homem é mesmo indeciso, e depois de nem sei quanto tempo ele diz: qual
é? Estou no Zum-Zum com os garotos. De vez em quando penso no homem-velho. O
que será que ele faz?
A coisa de que eu mais gosto no
mundo é dormir. Acordar ao meio-dia e ir para a praia. Hoje é dia 4 de Dezembro
e está um sol bárbaro lá fora. Me espreguiço. Isa chega com uma bandeja. Fiz
uma gemada para ti, ela põe o prato fundo na minha frente, agora só chega
depois das seis, perdendo tempo com esses garotões. Eu gosto de dançar, ela não
gosta; eu gosto dos homens (bonitos, jovens, fortes), ela gosta do marido que
nem é casado com ela e ninguém sabe onde anda; eu não gosto de ficar sozinha,
eu, Isa, pelo amor de Deus!, não chateia, me levanto, ponho um disco no prato
e começo a dançar, eu gosto de ficar o dia inteiro ouvindo música, eu preciso
ouvir música, é igual ao ar pra mim. Estou falando para o teu bem. Eu sei que estás
falando para o meu bem. Ninguém aguenta essa vida que está levando. Não vejo nada
de errado nela. Pense no futuro. O futuro não me interessa e não me chateia
mais, senão vou-me embora. O José Roberto telefonou, o sujeito de São Paulo que
esteve contigo ontem. Isa gostaria de saber coisas sobre o paulista, mas
resolvo fazer mistério para ela deixar de ser chata. Também não sei nada sobre
esse José Roberto. Nem sei se ele é mesmo paulista. Nem sabia que ele se
chamava José Roberto. José Roberto não é nome de velho. Ele vai telefonar de
novo.
Ele tem um cheiro bom e fala
muito suavemente comigo. Estamos sós. Ele diz que ontem tinha gente demais, eu
queria ficar só contigo. Ele parece meio constrangido, como se nunca tivesse saído
com uma garota de programa. Senta-se longe de mim. Nunca saiu com uma garota de
programa antes? Já, já saí com uma porção, muitas, nem sei quantas. Então porque
fica fingindo? Não estou fingindo coisa alguma. Ele prepara as bebidas. Em cima
da mesa da sala vejo um monte de revistas e um papel, José Roberto, estive aqui e não te
encontrei, telefona pra mim, beijos, Suely. Pego o bilhete,
faço uma bolinha com ele e atiro pela janela. A noite está muito escura, eu não
vejo o mar mas sinto o seu cheiro. De noite o mar tem um cheiro diferente, o
mar muda de cheiro várias vezes por dia». In Rubem Fonseca, Lúcia McCartney, 1969,
Agir Editora, 2009, ISBN 978-852-201-065-3.
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