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Os escravos na sociedade portuguesa
«(…) Igual importância tinham o campo e a cidade, mas, por razões
diversas, registava-se maior concentração de escravos nos centro urbanos. O
escravo quando chegava a Portugal, vinha como mercadoria e não como mão-de-obra
específica; depois, poderia ter vários rumos consoante o comprador, inclusivamente,
ser destinado à exportação. A intensificação da mão-de-obra escrava resultou,
como refere Magalhães Godinho, de uma maior procura e oferta, de facilidades no
circuito comercial e, pode acrescentar-se, do interesse lucrativo. Todavia,
quer na cidade quer no campo, o escravo era sempre votado às tarefas mais vis
ou àquelas que requeriam maior esforço, por regra recusadas ou raramente
aceites pelo homem livre, sobretudo numa época em que os escravos proliferavam.
Além disso, a sua presença veio permitir à população de nível médio um certo
desprezo pelo trabalho e facilitar a exaltação de manias nobiliárquicas. Clenardo
vê esta terra como um panorama social em que todos eram nobres, pouco
sofredores de trabalhos manuais, segundo a observação de Duarte Nunez Leão, e,
no dizer de Gil Vicente, uma terra onde todos aspiravam ser cavaleiros fidalgos.
Todavia, pensa-se que a maior utilização do escravo não se ficou a dever à
indiferença dos portugueses pelo trabalho. Parece superficial a análise de Anna
J. Cooper quando afirma, na sua tese de doutoramento, que a origem da escravatura
moderna deve ser procurada dans les moeurs mêmes dis Espagnols et des
Portugais, peu enclins au travail manuel et trop indolents poui s'y adonner eux-mêmes.
No século XVI, Portugal teria uma população que rondaria 1 400 000 habitantes
e, baseado na obra Ásia Portuguesa de Faria Sousa, Costa Lobo afirma que
durante o primeiro terço desse século ter-se-iam verificado, somente nas
armadas da Índia, uma média anual de 2 400 saídas, excluídos já os que haviam
de regressar a Portugal. Apesar dos números apresentados, Magalhães Godinho
considera mais correcta a cifra de 2 000 saídas anuais para o Índico, em vez
das 2 400 apresentadas por Costa Lobo. Refere mesmo que, no decurso do século,
esse número se foi reduzindo progressivamente para 1 500 a 1 000, à medida que
o imperialismo guerreiro foi sendo ultrapassado pela era comercial. De 1497 a
1527, navegaram para a Índia cerca de 320 naus, cada uma levando em média 250
homens. Após o reinado de Manuel I, segundo Severim Faria, o número de homens
embarcados em cada nau aproximava-se dos 700 / 800, ou mesmo mais. Este acréscimo
devia-se ao facto de as naus, que nos primeiros tempos não passavam das 400
toneladas, terem aumentado consideravelmente a sua tonelagem a partir dessa
altura, chegando a atingir as 800 ou 900.
Destes homens que partiam, muitos morriam durante a viagem e a maioria dos
que chegavam ao destino nunca mais regressava à metrópole. Diogo Couto noticia que,
na nau em que o vice-rei António Noronha foi para a Índia, partiram de Lisboa
900 pessoas, das quais 450 morreram na viagem, acontecendo idêntica situação
nas restantes naus da armada, o que reduziu para 2 000 os 4 000 soldados
embarcados. Duarte Gomes Solis confirma esta realidade, ao notar a frequência
destes acontecimentos, como o da nau São Valentim em que morreram 400 pessoas.
A situação no Oriente também não era das mais propícias ao europeu, onde as guerras,
o clima e as privações, provocavam grande mortalidade. De 1510 a 1513 teriam
morrido cerca de 3 000 portugueses no Oriente, uma média de 750 por ano. E em
Janeiro de 1514, havia já perecido mais de metade das pessoas que incorporavam
a armada que saíra do reino, em Março de 1510. O número dos que embarcavam,
legal ou clandestinamente, e a quantidade dos que morriam na viagem ou se
dispersavam por terras de além- mar podem suscitar reservas. Não obstante, os
testemunhos são reveladores». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao
Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de
Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.
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