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Os escravos na sociedade portuguesa
«(…) A expansão ultramarina, a ocupação e manutenção das praças
marroquinas, a colonização de zonas despovoadas de além-mar, a fixação e
exploração comercial de certas zonas do ultramar foram outros motivos
responsáveis pela dispersão dos portugueses pelo mundo inteiro e por uma certa
diminuição populacional na metrópole, sobretudo a partir do século XVI; a
intolerância religiosa foi outro motivo
que levou ao afastamento e fuga de muitos judeus e cristãos-novos. Nestas
circunstâncias, compreende-se que certos portugueses vissem nas levas de
cativos africanos um suplemento de mão-de-obra de baixo custo, capaz de ser
utilizada no amanho das terras incultas e rarefeitas de povoadores. Nesse
sentido, Vitorino Magalhães Godinho explica a intensificação do emprego
de escravos na Europa a partir do século XIV, acentuando a necessidade de
mão-de-obra gerada pela saída de trabalhadores:
Por que é que se intensifica a escravatura? Facilidades da oferta e do
circuito de comércio e circulação, decerto, mas também aumento da procura,
indispensável. Na realidade, impossível é esquecer a situação do mercado da
mão-de-obra que a Peste Negra agravou paroxisticamente. A própria crise
agrícola que dela resultou (ou que ela pelo menos agudizou) levava a buscar
saídas no incremento das actividades comerciais e industriais e em novas culturas
de maior rentabilidade. Não podemos desatender ao alastrar das plantações de
cana sacarina e ao aparecimento de novos engenhos de açúcar no Levante
hispânico no século XIV. E em Portugal vimos já que o mesmo acontece no caso de
Trezentos e primeira metade de Quatrocentos. Mas por outro lado, à primeira
vista paradoxalmente, a expansão quatrocentista lança o processus
emigratório: a terra expulsa os seus filhos, ao mesmo tempo que reclama braços
vindos de fora.[...] Afinal, resultado lógico das condições estruturais que
persistem através de todo o Antigo Regime peninsular: obstáculo intransponível
à promoção social e económica dos desfavorecidos, empurram-nos para ganhar a
vida em terras alheias ou que vão valorizar pela primeira vez, enquanto a
estrutura persistente tem que ir buscar ao exterior a mão-de-obra de que carece.
Confronte-se esta explicação de Magalhães Godinho com a opinião de Duarte
Nunez Leão que justifica a presença em Portugal de muitos míl escravos de Guiné
e de outras partes da Etiophia e da India por haver menos obreiros para a
lavoura, e por tanto preço, que os lavradores ficão achando maior a despesa que
a colheita. Mas os problemas levantados pela falta de braços nos campos, não
foram os únicos responsáveis pela importação e grande utilização do escravo.
Opondo-se a Magalhães Godinho, José Ramos Tinhorão, no livro Os negros em
Portugal, é de opinião que essa intensificação do emprego do escravo se ficou a
dever ao problema da nova divisão do trabalho desencadeado pelo incremento
da actividade comercial, ligada à ampliação das possibilidades da navegação e das
actividades burguesas. O autor continua a sua explicação, afirmando que a
desorganização da vida rural provocada pelo deslocamento do centro de
interesses económicos do interior para o litoral, levou à decadência da
produção agrícola em Portugal e à consequente diminuição da necessidade de
trabalhadores rurais. Mas, em contrapartida, o desenvolvimento da vida urbana e
do comércio originaram maior procura do trabalho criando nas cidades uma súbita
falta de mão-de-obra no sector dos serviços urbanos, só colmatável com a
importação de escravos. José Ramos Tinhorão justifica esta explicação com o
facto de se concentrar mais mão-de-obra escrava nas cidades do que nos campos.
A importância do trabalho escravo nas cidades, como se verá adiante, é um
facto que deve ser realçado e não esquecido. Parece, no entanto, que esta problemática
não deve ser polarizada unicamente à volta da situação que se vivia nas
cidades, em particular na cidade de Lisboa, ou nos centros onde o desenvolvimento
do comércio era mais intenso». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao
Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de
Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.
Cortesia de Colibri/JDACT