domingo, 10 de maio de 2020

A Rainha Perfeitíssima. Paula Veiga. «A promessa de casamento teve lugar em Setúbal, no dia 22 de Janeiro, mas não existiram festejos significativos, dada a necessidade de pedir ainda ao papa a dispensa de impedimento de parentesco…»

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Setúbal, 22 de Janeiro de 1471
«(…) A promessa de casamento com meu primo João foi assinada quando tinha apenas doze anos de idade. O noivo era pouco mais velho do que eu, porque a diferença de idades existente entre nós era apenas de três anos. Apesar de o achar garboso, ainda não o amava. O meu futuro marido era um jovem bem-parecido, de estatura média, airoso e bem proporcionado. Tinha um rosto comprido, olhos escuros, cabelo castanho, uma boca e um nariz bem-feitos. Começavam já a notar-se uns pelos na cara que mais tarde se viriam a traduzir numa barba cerrada e escura, a qual ele dedicaria muita da sua
atenção. Diria mesmo que o meu futuro marido era muito zeloso quando estava em causa o seu aspecto. No que respeita às suas características morais, o seu preceptor não se acanhava em lhe tecer elogios e dizia que era esperto, subtil, engenhoso, detentor de uma memoria fenomenal, arguto e prudente. Também referia que tinha grande facilidade em se expressor, embora detivesse sempre um semblante grave. Dizem os mais velhos que era um Príncipe Perfeito, mas sei que estas características, visíveis desde muito jovem, iriam traduzir-se, mais tarde, num feitio difícil que seria temido por todos.
A promessa de casamento teve lugar em Setúbal, no dia 22 de Janeiro, mas não existiram festejos significativos, dada a necessidade de pedir ainda ao papa a dispensa de impedimento de parentesco para validar este casamento. Devido à nossa idade, aquilo que deveria ter sido um grande acontecimento foi apenas uma pequena cerimónia. Também o recente falecimento de meu querido pai e o facto de ainda nos encontrarmos de luto pesaram na escolha de se efectuar somente um pequeno evento.

Beja, Paço Ducal, 16 de Agosto de 1472
Aquando da fundação do ducado de Beja, a família veio residir para esta cidade alentejana, onde foi edificado um bonito palácio branco cravejado com azulejos mouriscos. Junto ao Palácio dos Infantes, foi também mandado construir o Convento de Nossa Senhora da Conceição com a sua grande escadaria, onde muitas vezes brinquei com Bé e Manuel Foram tempos muito felizes, dos quais tenho muitas saudades. Mas tudo isso iria mudar, porque tempos conturbados estavam para chegar.
Desde que meu pai partira, a família recolhera-se durante longos meses no Alentejo. Encontrávamo-nos em Beja, naquele tórrido mês de Agosto, quando o meu irmão João morre repentinamente.
João, o irmão que herdara de nosso pai vários títulos, finou-se subitamente. Não houve tempo sequer para que os médicos lhe diagnosticassem o problema e João faleceu alagado em suores e delirando durante várias horas. Morreu jovem, solteiro e, porque não tinha filhos, foi o nosso irmão Diogo que lhe sucedeu, tornando-se um dos mais poderosos nobres do reino, logo a seguir ao duque de Bragança. João era o mais sensato dos meus irmãos mais velhos. Ao contrário de Diogo, era educado, amável e sensível. Foi devido à sua morte prematura que a historia dos duques de Viseu veio a ser escrita com sangue. Nada do que veio a suceder teria certamente acontecido se João não tivesse morrido naquela altura.
Todos nós, à excepção de Diogo, ficámos devastados quando o nosso irmão deu o último suspiro. Diogo nem esperou pela confirmação régia, autoproclamou-se desde logo duque de Viseu e saiu pavoneando-se pelo paço, dando ordens inconvenientes e exigindo desde logo obediência e empenho aos seus servos. Minha mãe apesar de ser uma mulher forte, ficou de rastos com a morte de João». In Paula Veiga, A Rainha Perfeitíssima, 2017, Edições Saída de Emergência, 2016/2017, ISBN 978-989-773-014-6.

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT