Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) É um
bom tipo do género a pequena igreja velha das Almas, à entrada de Viana pelo
lado de Meadela. Rodeia-a um pequeno adro, em que a erva sobe ao último degrau
do cruzeiro da Via Sacra. A sombra de seis altos e esguios ciprestes marca a
hora no chão, como no mostrador de um relógio de sol, e no tecto do templo,
apainelado em madeira de castanho, uma pintura moderna, recente produto da arte
constitucional do último quartel do nosso século, representa um óptimo burguês
de Viana, director talvez do Banco Agrícola e Industrial, no acto de subir ao
Céu, dando vivas à Carta e à Junta da Paróquia. Mais para o interior do campo
deixa de grassar a pintura moderna nos monumentos religiosos.
Os tectos
das pequenas igrejas esverdinham-se de musgo; as andorinhas fazem ninho nos
relevos arquitectónicos junto do postigo gradeado do coro; crescem os tortulhos
na base do madeiramento dos altares; um Bom Jesus, ingenuamente carpinteirado,
parece dormir tranquilo, grato à simplicidade encantadora deste culto,
satisfeito de uma felicidade vegetal nas suas cinco chagas, as quais, lembrado
talvez da sua anterior existência de laranjeira, ele toma antes por alporques
do que por lançadas, tendo mais vontade de dar folha e fruto aos bons viventes
do que de lhes pedir fel do alto da sua cruz de talha, entre os palmitos
murchos da última festa do orago! E, por fora da torre estreita e quadrada, a
corda do sino, pendente do gancho da porta, oscila, solta no espaço à viração
dos campos, como fazendo batuta de regente ao compassado ondular das messes.
Os
abades têm as batinas velhas, os cabeções um pouco pingados de rapé e os
sapatos cambadas pelas longas caminhadas às codornizes; mas são geralmente
gordos, saudáveis e nédios. Os enfezados e os magrizelas são vítimas de antigas
enfermidades heterodoxas, contraídas no tempo de minoristas quando estudantes
nos seminários de Braga ou de Lamego, não jamais porque os definhe como curas
de almas a esterilidade dos passais ou a magreza dos pés de altar. Alguns
destes pastores espirituais são particularmente interessantes. Numa freguesia
deste bispado o pároco, desejando desviar os rapazes seus fregueses do vício
funesto do jogo, conseguiu fazer representar o drama salutar intitulado Trinta
Anos ou a Vida de Um Jogador por uma companhia de curiosos analfabetos, que ele
mesmo ensaiou, ensinando-lhes os papéis de ouvido, como lhes ensinara a
cartilha. Na representação uma das personagens da peça, a dama, leu de-fio-a-pavio
uma carta que recebia em cena, e leu-a bem, no meio dos aplausos gerais do
público. Somente, por um infernal descuido, o jovem rapaz das vacas, incumbido
do interessante papel da heroína a quem era endereçada a epístola, esqueceu-se
de a abrir, e foi através do sobrescrito lacrado que leu com ardor, vibrante de
comoção trágica, a longa narrativa do fatal caso!
Um outro,
com luzes da língua francesa e espírito aberto ao modernismo, começou a prática
de uma dominga quaresmal dirigindo-se aos fiéis da sua pequena paróquia rural
nos seguintes termos de dentista de almas: madamas e monsiús. Esta
erudita amenidade de boulevardeiro produziu sobre o pêlo de todas as ovelhas
presentes uma satisfação enorme. De resto, o meu amigo Guerra Junqueiro, o qual
enquanto não fizer da sua casa um poema, que eu espero, fez já um poema da casa
que habita em Viana, tinha razão ao dizer-me que esta é a terra da promissão
para os artistas e para os abades: a paisagem do Lima deslumbra e engorda. Uma
coisa inteiramente especial e digna de estudo é o aspecto das numerosas
diligências, breaks e chars-à-bancs, que circulam sobre estas estradas, desde
os Arcos e desde Ponte de Lima até Viana.
Dois
pequenos garranos, quando não é um só, puxam por cima do macadame faiscante de
sol as mais fantásticas carradas de gente e de objectos que a imaginação pode
conceber. Dentro do veículo senta-se a primeira camada de passageiros nas
bancadas. Depois de todos os lugares ocupados estreitissimamente, à cunha, o
veículo considera-se completamente vazio, e mete-se-lhe a segunda camada de
passageiros, colocada exactamente em cima da primeira. Feita esta operação
começa o interior do carro a achar-se quase cheio, mas não cheio de todo,
porque entre o tecto, os joelhos e os bustos dos passageiros da segunda camada
nota-se ainda um espaço oblongo a toda a extensão da berlinda, desde a
portinhola do fundo até ao vidro da frente. Preenchido este espaço com um
passageiro estendido ao comprido, passa-se a ocupar os bancos da imperial e o
tejadilho.
Fora,
em vez de irem empilhados como no interior, os passageiros são ensanduichados
metodicamente com as bagagens e com as mercadorias, pela ordem seguinte: camada
de mercadorias, primeira camada de passageiros, primeira camada de bagagens,
segunda camada de passageiros, segunda camada de bagagens; e em cima de tudo
isto, o penso para os garranos, os merendeiros e os varapaus dos passageiros e,
no ar, a um lado, seguro da almofada pela cinta, seguro do guarda-lama pelas
pernas, o cocheiro levado a braços pelos viajores. Para quem olha de longe, a
carruagem desaparece completamente sob a enorme massa viva, e não se vê mais
que um enorme e inverosímil cacho de gente agarrada uma à outra por um engaço
misterioso, bamboleando ao sol, oscilando da direita para a esquerda e da
esquerda para a direita, e prosseguindo lentamente, levado por duas formigas.
Chegados
ao termo da viagem, na praça mais espaçosa da povoação, os garranos param, a
carruagem esvazia-se, e a praça enche-se. Examinei atentamente o cocheiro de um
desses veículos, e segui os seus movimentos desde que baixou do espaço até que
o deixaram a sós com a parelha e com a carrimónia nua». In Ramalho Ortigão e Eça de
Queirós, As Farpas, 1878, Crónica Mensal, Tipographia Universal, Principia
Editora, 2003-2005, ISBN 979-972-881-840-0.
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