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O Princípio de Arquimedes (1984)
«(…) Então, Mattia punha-se de
pé, levantando a cadeira para não a arrastar pelo chão e colocava-se atrás de
Michela, que girava a cabeça de um lado para o outro e esbracejava, agora, com
tanta rapidez que ele até tinha medo que os braços se lhe despegassem do corpo.
Mattia pegava-lhe nas mãos e delicadamente fechava-lhe os braços no peito. Agora
já não tens asas, segredava-lhe ao ouvido. Michela ainda demorava alguns
segundos a deixar de tremer. Ficava fixada em algo de inexistente durante alguns
segundos, e depois recomeçava a torturar os seus desenhos como se nada fosse.
Mattia sentava-se de novo no seu lugar, cabisbaixo e de orelhas vermelhas de
embaraço e a professora prosseguia com a explicação. No terceiro ano os gémeos
ainda não tinham sido convidados para nenhuma das festas de aniversário dos
seus colegas. A mãe apercebeu-se do facto e pensara resolver a situação dando
uma festa por ocasião dos anos dos gémeos. À mesa o senhor Balossino havia
rejeitado a proposta dizendo por amor de Deus Adele, a coisa já é
suficientemente penosa como está. Mattia havia suspirado de alívio e Michela
deixara cair o garfo pela décima vez. Nunca mais se voltou a falar no assunto.
Depois, numa manhã de Janeiro,
Riccardo Pelotti, aquele que tinha cabelos ruivos e lábios de babuíno,
aproximou-se da carteira de Mattia. Olha, a minha mãe disse que também estás
convidado para a minha festa de anos, disse, num fôlego e a olhar para o
quadro. E ela também, acrescentou, apontando para Michela que alisava
cuidadosamente a superfície da carteira, como se fosse um lençol. A cara de
Mattia começou a formigar de emoção. Respondeu obrigado, mas Riccardo, aliviado
do peso, já se havia afastado. A mãe dos gémeos ficou logo agitada e levou
ambos à Benetton para os vestir com roupa nova dos pés à cabeça. Passaram por
três lojas de brinquedos, mas Adele não parecia muito convicta.
Mas o Riccardo gosta de quê? Será
que vai gostar disto?, perguntava ela a Mattia, avaliando um puzzle de mil e
quinhentas peças. E eu é que sei?, respondia o filho. Bom, é teu amigo. Deves
saber quais os brinquedos de que ele gosta. Mattia pensou que Riccardo não era
bem seu amigo, facto que não conseguiria explicar à mãe. Limitou-se a encolher
os ombros. Por fim, Adele escolheu a nave da Lego, a caixa maior e o brinquedo mais
caro da loja. Mamã, é muito, protestou o filho. Não é nada. E vocês são dois.
Não vais querer fazer má figura. Mattia sabia muitíssimo bem que, com ou sem
Lego, má figura era coisa que faziam sempre. Com Michela era impossível o contrário.
Sabia muitíssimo bem que Riccardo só os convidara para a sua festa de anos
porque os pais a tal o haviam obrigado. Michela colar-se-ia a ele do princípio
ao fim da festa, verteria a laranjada em cima dele e, depois, pôr-se-ia a
choramingar, como fazia sempre que estava cansada. Mattia, pela primeira vez,
achou que seria melhor ficar em casa. Aliás, achou que seria melhor que Michela
ficasse em casa. Mamã, disse, incerto. Adele procurava o porta-moedas na
carteira. Sim? Mattia respirou fundo. A Michela tem mesmo de ir à festa?
Adele imobilizou-se de repente e
espetou os olhos nos do filho. A menina da caixa observava a cena com olhar
indiferente, de mão estendida sobre o tapete rolante à espera do dinheiro.
Michela misturava os pacotes de rebuçados no expositor. As faces de Mattia
aqueceram, preparando-se para receber uma bofetada, que acabou por não
aparecer. É claro que tem de ir, limitou-se a dizer a mãe, encerrando a questão.
Podiam ir sozinhos até casa do Riccardo. Eram apenas dez minutos a pé. Às três
em ponto Adele empurrou os gémeos para fora de casa. Vá, vão-se lá embora, que
já é tarde. Não se esqueçam de agradecer aos pais dele. Depois, virou-se para o
Mattia. Fica de olho na tua irmã. Sabes bem que há certas porcarias que ela não
pode comer. Mattia anuiu. Adele despediu-se de ambos com um beijo na cara, o de
Michela mais demorado. Ajustou-lhe os cabelos por baixo do travessão e disse
divirtam-se. Durante o trajecto para casa de Riccardo os pensamentos de Mattia
eram ritmados pelo chocalhar das peças do Lego, que se mexiam dentro da caixa como
uma pequena maré, batendo nas paredes de cartão de um lado e depois no outro.
Atrás de si, alguns metros mais além, Michela tropeçava para manter a passada,
arrastando os pés sobre a camada de folhas caducas coladas ao asfalto. O ar
estava parado e frio.
Vai deixar cair as batatas fritas
todas no chão, pensou Mattia. Vai pegar na bola e não a dá a ninguém. Queres-te
despachar?, disse à gémea, que se acocorara no meio do passeio e com um dedo
torturava uma minhoca do tamanho de um dedo. Michela olhou para o irmão como se
o visse pela primeira vez depois de muito tempo. Sorriu-lhe e correu ao seu
encontro apertando a minhoca entre o polegar e o indicador. Que nojo. Deita-a
fora, ordenou Mattia, recuando. Michela olhou de novo para a minhoca e pareceu
questionar-se. Como é que teria ido parar às suas mãos. Depois, deixou-a cair e
esboçou uma corrida desajeitada para apanhar o irmão que já se afastara alguns
passos». In Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, 2008, tradução de José
Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-251-834-5.
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