Cortesia
de wikipedia e jdact
Noite
na Selva Aguaruna
«(…) Aquele homem que dispõe na
praia os seus amuletos protectores, as pedras verdes e azuis que manterão o rio
no seu lugar, aquele homem é meu irmão, e com ele olho para a lua que se mostra
de vez em quando entre as nuvens banhando de prata as copas das árvores. Oiço-o
murmurar: tudo é como deve ser. A noite aperta a polpa dos frutos, desperta o
desejo dos insectos, acalma a inquietação das aves, refresca a pele dos
répteis, põe os vaga-lumes a dançar. Sim. Tudo é como deve ser. Encarrapitada
no seu altar de pedras, a anaconda, enrolada sobre a maldição do seu corpo,
ergue a cabeça para observar o céu com a inocência dos irremediavelmente
fortes. Os seus olhos amarelos são duas gemas ausentes, alheios que são ao
rumor dos felinos que, com a fome colada às costelas, seguem o rasto das suas
vítimas, alheios à brisa que, nesta época sem chuvas, não pára de transportar o
pólen para as clareiras abertas pelo engenho ou mesquinhez de outros homens ou
pela eléctrica crueldade do raio. Aquele homem que espalha agora sobre a areia
as sementes de tudo o que cresce no seu território de origem, para depois
estender sobre elas o corpo fatigado, aquele homem é o meu imprescindível
irmão. Duras são as sementes do cusculi, mas irão trazer para os seus sonhos
todas as bocas ansiosas que receberam o seu sabor agridoce no tempo do amor.
Ásperas são as sementes do urucuzeiro, mas a sua polpa vermelha adornou as
caras e os corpos das eleitas. Dolorosas são as sementes da yahuasca, porque
talvez assim disfarcem a doçura do licor que produzem e que, bebido com a ajuda
dos velhos sábios, dissipa o tormento das dúvidas sem entregar as respostas,
antes enriquecendo a ignorância do coração. Num alto ramo que os defende do
puma, os micos sobressaltam-se ao ver uma cintilação ao longe. Foi aquele
homem, meu irmão, que acendeu uma fogueira e me convida a partilhar os seus
bens enquanto sussurra baixinho: tudo é como deve ser. O fogo atrai os
insectos. O jaguar e o urso formigueiro observam de longe. A preguiça e o
lagarto gostavam de se aproximar. O escaravelho e a centopeia espreitam no meio
da folhagem. As línguas de fogo dizem que a madeira arde sem rancor. Sim. Tudo
é como deve ser. Aquele homem, meu irmão, ensina-me que devo aproximar os pés
da fogueira e reparar com a cinza morna os estragos que a longa caminhada
deixou. A penumbra não deixa reconhecer as suas tatuagens e os riscos que
pintou na cara, mas a floresta conhece a dignidade da sua tribo, a importância
da categoria atestada pelos seus enfeites.
Envolvido pela noite, é simplesmente
um homem, um homem da floresta que observa a lua, as estrelas, as nuvens que
passam, enquanto escuta e identifica cada som que nasce na espessura: o
aterrador guincho do mico nas garras do felino, a monótona telegrafia dos
grilos, o veemente resfolgar dos javalis, o ciciar da cascavel que amaldiçoa a
sua venenosa solidão, os fatigados passos das tartarugas que acorrem à praia
para desovar, a quieta respiração dos papagaios emudecidos pela escuridão. Assim
adormece, lentamente, agradecido por ser parte da noite selvagem. Parte do
mistério que o irmana à minúscula larva e à madeira que crepita enquanto se
retesam os músculos centenários de um ombuzeiro.
Contemplo-o a dormir, e sinto-me
feliz por compartilhar o sereno mistério que delimita o espaço entre as ternas
perguntas da vida e a definitiva resposta da morte.
A
Ilha Perdida
Chama-se Mali Losinj e, vista do
ar, é uma mancha ocre no Mar Adriático em frente da costa de um país que se
chamou Jugoslávia. Cheguei lá uma vez sem planos nem prazos de maior, e numa
velha casa de Artatore escrevi o manuscrito do que viria a ser o meu primeiro
romance. Por toda a parte floresciam as ameixieiras, os loendros e as pessoas.
Florescia, por exemplo, Olga, uma bela croata que partilhava os deveres da sua
pensão com o seu amor pela voz dilacerada de Camarón de la Isla. Florescia
Stan, um esloveno que todas as tardes acendia o churrasco, abria umas garrafas
de sliwovitz e convidava vizinhos e transeuntes desfrutando da
hospitalidade da sua esplanada. Florescia Goyko, um montenegrino que fornecia
peixe e lulas para a festa, e Vlado, um macedónio que cantava árias incompreensíveis
e nem por isso menos belas. Com as suas histórias bem desfiadas, florescia
Levinger, o farmacêutico bósnio, judeu, ex-membro do serviço de saúde dos
resistentes antifascistas. Às vezes, Pantho, um sérvio expulso da Marinha,
tocava acordeão, cantávamos todos, e à segunda garrafa de sliwovitz irmanávamo-nos
no carinho dos diminutivos: Olgitza, Stanitza, Goylitza, Vladitza, Panthitza.
Entendíamo-nos graças a uma salada babélica de italiano, alemão, espanhol,
francês e servo-croata. O que interessa é que nos entendemos, diziam-me. Na
Jugoslávia a gente entende-se, repetiam. Tschibili, salud, prosit, salute, santé.
Mali Losinj foi durante vários anos o meu paraíso secreto, até que aconteceu
qualquer coisa, qualquer coisa que víamos aproximar-se e que nenhum dos meus
amigos era capaz de explicar, mas que se notava numa alteração de humor ou numa
resistência quando se tratava de falar da história do país. Quando a
bestialidade do nacionalismo sérvio tirou dos museus a parafernália chetnik e a
bestialidade do nacionalismo croata se vestiu de ustacha, a ilha não ficou
alheia ao conflito. Olga fechou as portas do seu coração ao flamenco e as
mulheres da sua pensão a todos aqueles que não fossem croatas. Pantho apareceu
uma manhã a caminhar sozinho pelas ruas de Artatore arrastando uma bandeira sérvia
e um velho ódio misturado com álcool. O alegre analfabeto que tocava acordeão
repetia o discurso grosseiro de todos os nacionalistas e atacava especialmente
o judeu Levinger, acusando-o de ser, como bósnio, um fundamentalista islâmico.
Stan foi para Liubliana e da sua bela casa em Artatore só lhe restam umas
fotografias mutiladas pela tesoura do rancor. Goyko e Vlado também abandonaram
a ilha, atemorizados por Pantho, que insistia em alinhá-los para o seu triste
desfile em honra de uma grande Sérvia, e por causa de Olga, que viu neles um
perigo ortodoxo para a sua grande Croácia católica». In Luis Sepúlveda, As Rosas de
Atacama, 2000, Porto Editora,
2020, ISBN 978-972-0-04091-6.
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