sábado, 13 de junho de 2020

Amantes de Buenos Aires. Alberto S. Santos. «E leu em voz alta: A minha filha é Cleide e é tão bela que só a posso comparar às flores douradas. Nelas, como num espelho, encontro a sua imagem repetida!»

jdact

Buenos Aires, 2009
«(…) Nesse momento, Raquel voltou a recordar a avó. Lembrava-se bem de, num dos dias que antecedeu o mergulho no seu sono eterno, ela a ter chamado. O rosto espelhava a serenidade de quem detinha o controlo sobre si próprio e sobre a vida. Abraçou a neta, lamentou a pilha de livros que ainda não lera e apertou-a contra si, com uma estranha boa-disposição. Guarda esses livros, espero ter oportunidade de os ler quando voltar numa próxima viagem da minha alma. Avó! O que estás a dizer? Ora, esquece! Acho que não cumpri todas as missões que tinha para a minha vida, talvez tenha de voltar. E abraçou a neta, com carinho e os olhos húmidos. Coisas de uma velha que já não tem mais em que pensar.
Vá lá, avó! Sempre a brincar. Já sei que me queres pedir alguma coisa. Uma das guloseimas que o médico te proibiu? Algum livro novo que descobriste na Internet?, brincou, reconfortada com o delicado odor da fragrância Jicky, da Guerlain, a preferida da avó. Sim, já me conheces. É um pedido, mas não é o que pensas. Então, o que é?!, questionou, com a curiosidade aguçada.
A anciã puxou um papel do meio de um livro e entregou-o a neta. Era perceptível que fora rasgado a meio, em partes de tinta antiga. Raquel pegou nele e ficou a olhar para as letras redondas, bem definidas e claramente femininas. E leu em voz alta: A minha filha é Cleide e é tão bela que só a posso comparar às flores douradas. Nelas, como num espelho, encontro a sua imagem repetida!
Foi a tua mãe quem escreveu isso, avozinha? Sim, é do punho dela. Adorava escrever. Raquel sorriu. A avó nunca falara de forma totalmente aberta sobre a mãe, mas sabia que fora uma espécie de heroína, que tinha sido ferozmente perseguida em Espanha e se refugiara em Portugal, antes de chegar a Buenos Aires. Raquel não sabia ao certo quais as verdadeiras razões de tais perseguições, associando-as vagamente a ideias politicas ou a algum desaguisado judicial.
Querida, a minha mãe, a tua bisavó, foi uma mulher extraordinária que me deixou uma pesada herança que sempre guardei no coração, na vã esperança de me poder juntar a ela em paz, onde Deus a tem. O que queres dizer, avó?, perguntou a neta, com a voz a dar sinais de trémula inquietação.
Não te preocupes. Coisas do passado, respondeu, apontando para o papel amarrotado. Quero que ponhas no meu epitáfio essa frase que ai tens. Será o meu memorial à minha querida mãe. Raquel deteve-se nas palavras redondas, assim que voltou a ouvir a voz da avó.
Outra coisa, durante a próxima semana, quando tiveres algum tempo livre, passa cá em casa. Não posso partir sem te contar alguns segredos da nossa família. Para a semana, avó? Raquel lembrou-se da viagem a Montevideu que havia combinado com o namorado. Sim, para a semana…» In Alberto S. Santos, Amantes de Buenos Aires, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-003-177-8.

Cortesia de PortoE/JDACT