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Buenos Aires, 2009
«(…) Nesse momento, Raquel voltou
a recordar a avó. Lembrava-se bem de, num dos dias que antecedeu o mergulho no
seu sono eterno, ela a ter chamado. O rosto espelhava a serenidade de quem detinha
o controlo sobre si próprio e sobre a vida. Abraçou a neta, lamentou a pilha de
livros que ainda não lera e apertou-a contra si, com uma estranha boa-disposição.
Guarda esses livros, espero ter oportunidade de os ler quando voltar numa
próxima viagem da minha alma. Avó! O que estás a dizer? Ora, esquece! Acho que
não cumpri todas as missões que tinha para a minha vida, talvez tenha de voltar.
E abraçou a neta, com carinho e os olhos húmidos. Coisas de uma velha que já não
tem mais em que pensar.
Vá lá, avó! Sempre a brincar. Já
sei que me queres pedir alguma coisa. Uma das guloseimas que o médico te
proibiu? Algum livro novo que descobriste na Internet?, brincou, reconfortada
com o delicado odor da fragrância Jicky, da Guerlain, a preferida da avó.
Sim, já me conheces. É um pedido, mas não é o que pensas. Então, o que é?!, questionou,
com a curiosidade aguçada.
A
anciã puxou um papel do meio de um livro e entregou-o a neta. Era perceptível
que fora rasgado a meio, em partes de tinta antiga. Raquel pegou nele e ficou a
olhar para as letras redondas, bem definidas e claramente femininas. E leu em
voz alta: A minha filha é Cleide e é tão bela que só a posso comparar às flores
douradas. Nelas, como num espelho, encontro a sua imagem repetida!
Foi
a tua mãe quem escreveu isso, avozinha? Sim, é do punho dela. Adorava escrever.
Raquel sorriu. A avó nunca falara de forma totalmente aberta sobre a mãe, mas
sabia que fora uma espécie de heroína, que tinha sido ferozmente perseguida em
Espanha e se refugiara em Portugal, antes de chegar a Buenos Aires. Raquel não
sabia ao certo quais as verdadeiras razões de tais perseguições, associando-as
vagamente a ideias politicas ou a algum desaguisado judicial.
Querida,
a minha mãe, a tua bisavó, foi uma mulher extraordinária que me deixou uma
pesada herança que sempre guardei no coração, na vã esperança de me poder
juntar a ela em paz, onde Deus a tem. O que queres dizer, avó?, perguntou a
neta, com a voz a dar sinais de trémula inquietação.
Não
te preocupes. Coisas do passado, respondeu, apontando para o papel amarrotado. Quero
que ponhas no meu epitáfio essa frase que ai tens. Será o meu memorial à minha
querida mãe. Raquel deteve-se nas palavras redondas, assim que voltou a ouvir a
voz da avó.
Outra coisa, durante a próxima
semana, quando tiveres algum tempo livre, passa cá em casa. Não posso partir
sem te contar alguns segredos da nossa família. Para a semana, avó? Raquel
lembrou-se da viagem a Montevideu que havia combinado com o namorado. Sim, para
a semana…» In Alberto S. Santos, Amantes de Buenos Aires, Porto Editora, 2019,
ISBN 978-972-003-177-8.
Cortesia de PortoE/JDACT