Baudolino
encontra Nicetas Coniates
«(…)
Finalmente, ao cair da noite, não ousando atravessar os jardins e os espaços
abertos entre Santa Sofia e o Hipódromo, correu para o templo, vendo seus
grandes portais abertos, e não imaginando que a fúria dos bárbaros chegaria a
profanar inclusive aquele recinto. Mas, ao entrar, ficou pálido de horror.
Aquele grande espaço estava semeado de cadáveres, entre os quais caracolavam
cavaleiros inimigos, vergonhosamente bêbados. Aquela gentalha estava quebrando
com golpes de maça o portão de prata da tribuna, ornado de ouro. O púlpito
magnífico fora amarrado com cordas para arrancá-lo e para fazê-lo arrastar por
uma fileira de burros. Um bando embriagado açulava, praguejando, os animais, mas
os cascos escorregavam no soalho polido do templo, os soldados incitavam
primeiro com a ponta e depois com a lâmina os pobres animais, que,
amedrontados, lançavam rajadas de fezes; alguns caíam no chão e quebravam a
perna, e assim toda a área ao redor do púlpito não era mais do que um lodaçal
de sangue e merdice.
Grupos
daquela vanguarda do Anticristo encarniçavam-se diante dos altares; Nicetas viu
quando abriram um tabernáculo, pegaram os cálices, jogaram no chão as sagradas
espécies, arrancaram com o punhal as pedras que adornavam a taça, e as
esconderam debaixo das roupas, atirando o cálice numa pilha comum, destinada à
fusão. Pouco antes, porém, outros, por zombaria, tiravam da sela dos cavalos um
frasco cheio de vinho, derramavam-no dentro do vaso sagrado e bebiam,
parodiando os movimentos de um celebrante. Pior ainda, no altar-mor já
desadornado, uma prostituta seminua, alterada por algum licor, dançava com os
pés nus sobre a mesa eucarística, parodiando os ritos sagrados, enquanto os
homens riam e a incitavam a tirar as últimas vestes; desnudando-se aos poucos,
ela começou a dançar diante do altar a antiga e pecaminosa dança do córdax, e
afinal se atirou, arrotando, cansada, no sólio do Patriarca.
Chorando
pelo que via, Nicetas apressou-se para o fundo do templo, onde se erguia o que
a piedade popular chamara de Coluna Sudatória, e que, com efeito, ao tocá-la
exibia seu místico e contínuo suor, mas não era, como veremos, por razões
místicas que Nicetas queria chegar até ela. E, na metade de seu percurso,
encontrou o caminho fechado por dois invasores de grande estatura, pareciam-lhe
gigantes, que gritavam algo num tom imperioso. Não era necessário conhecer-lhes
a língua para entender que, pelo traje de homem de corte que ele vestia,
imaginavam que estivesse cheio de ouro, ou que pudesse dizer onde o teria
escondido. Naquela altura Nicetas acreditou que estava perdido, pois, como
acabara de ver, na sua desesperada corrida pelas ruas da cidade invadida, não
bastaria mostrar que carregava poucas moedas, ou negar que possuísse um tesouro
em algum lugar: nobres desonrados, velhos em lágrimas, ricos empobrecidos, eram
torturados até a morte para que revelassem onde haviam escondido seus bens,
eram assassinados se não conseguiam revelar os bens que já não possuíam,
abandonados ao chão quando o revelavam, após ter sofrido tantas sevícias, que
morriam, de qualquer modo, enquanto os seus algozes erguiam uma pedra,
derrubavam uma falsa parede, destruíam um contraforte, e punham suas mãos
vorazes em louças preciosas, roçavam sedas e veludos, acariciavam peliças,
desfiando entre os dedos pedras e colares, cheirando vasos e saquinhos de
drogas raras.
Assim,
naquele instante Nicetas viu-se morto, chorando a família que o perdera, e
pedindo a Deus Omnipotente perdão de seus pecados. E foi naquele momento que
Baudolino entrou em Santa Sofia.
Apareceu belo como um Saladino, num cavalo coberto de gualdrape,
a grande cruz vermelha ao peito, a espada desembainhada, a gritar ventre de
Deus, mãe de Deus, morte de Deus, nojentos blasfemadores, porcos simoníacos, é
este o modo de tratar as coisas de Nosso Senhor?, e dava golpes de sabre
naqueles blasfemos crucíferos tal como ele, com a diferença de que não estava
bêbado, mas furioso. E ao chegar até à vagabunda, estirada no sólio patriarcal,
inclinou-se, agarrando-a pelos cabelos, arrastou-a pelo esterco das mulas,
gritando coisas horríveis sobre a mãe que lhe dera a vida. Mas, à sua volta,
todos aqueles que ele acreditava castigar estavam tão cheios de vinho, ou tão
ocupados em arrancar as pedras de toda a matéria que as engastava, que não
perceberam o que estava fazendo. E, ao fazer isso, chegou curveteando frente
aos dois gigantes, que estavam prontos para torturar Nicetas, olhou para o
infeliz que implorava piedade, deixou a cabeleira da cortesã, que caiu no chão,
estropiada, e disse num óptimo grego: por todos os doze Reis Magos, és o senhor
Nicetas, ministro do basileu! O que posso fazer por ti Irmão em Cristo, quem
quer que sejas, gritou Nicetas, liberta-me desses bárbaros latinos que me
querem morto, salva o meu corpo e salvarás a tua alma! Dessa troca de vocalises
orientais os dois peregrinos latinos não entenderam nada e perguntavam o motivo
para Baudolino, que parecia um deles, exprimindo-se em provençal. E, num óptimo
provençal, Baudolino gritou que aquele homem era prisioneiro do conde Balduíno de Flandres, por ordem do
qual estava justamente a procurá-lo, e por arcana imperii, que dois
miseráveis soldados como eles jamais compreenderiam. Os dois tremeram de medo
por um instante, mas pouco depois concordaram que perderiam tempo em discutir,
enquanto podiam buscar outros tesouros sem maiores esforços, e se afastaram na
direcção do altar-mor.
Nicetas não se inclinou para beijar os pés de seu salvador, mesmo
porque já estava no chão, mas estava demasiadamente perturbado para
comportar-se com a dignidade exigida pela sua
condição: meu bom senhor, obrigado pela ajuda, nem todos os latinos são
animais ferozes, com o rosto desfigurado pelo ódio. Nem os sarracenos agiram
assim quando reconquistaram Jerusalém, quando Saladino contentou-se com poucas
moedas para deixar a salvo os habitantes! Que vergonha para toda a cristandade,
irmãos armados contra irmãos, peregrinos que deveriam reconquistar o Santo
Sepulcro e que se tornaram presas da ambição e que destroem o império romano!
Oh Constantinopla, Constantinopla, mãe das igrejas, princesa da religião, guia
das perfeitas opiniões, mãe de todas as ciências, repouso de toda a beleza,
bebeste na mão de Deus o cálice do furor, e ardeste mais que o fogo que arrasou
Pentápolis! Quais invejosos e implacáveis demónios
espalharam sobre ti a intemperança de sua ebriedade, que loucos e odiosos
Prócios acenderam a tocha nupcial?» In Umberto Eco,
Baudolino, 2001, tradução de Marco Lucchesi, Editora Record, Brasil, 2010, ISBN
978-857-799-002-3.
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